O monarca inglês da dinastia Tudor, Henrique VIII (1491 – 1547), é conhecido por seus seis matrimônios – muitos deles com finais controversos. Entre eles, o enlace com a alemã Ana de Cleves (1515 – 1557), é talvez o mais envolto a mitos e senso comum – uma vez que seu nome está sempre ligado a boatos ou considerações pouco fundamentadas acerca de sua aparência. Isto deve-se ao fato de que, politicamente falando, ao contrário das outras uniões do monarca, o enlace entre Ana e Henrique VIII, foi de caráter puramente político, o que fez despertar no mesmo, um sentimento de aversão acerca da união promovida por seu primeiro-ministro, Thomas Cromwell. Com base nisso, iremos através deste artigo, desmitificar os rótulos, estereótipos e mitos que envolvem a imagem e trajetória de Ana de Cleves.
MITO n1 – Henrique VIII chamou Ana de Cleves de ‘A Égua de Flanders’.
Resposta: Falso.
Esta é uma alcunha apócrifa. O termo “Flanders Mare” (ou égua de Flanders em tradução literal), foi um apelido criado por Gilbert Burnet, um cronista escocês, em meados do século XVII. Não há qualquer documento da época, que mencione que o monarca inglês tenha referido-se à Ana deste modo. Há de se mencionar também que, Burnet (nascido em 1643), nunca conheceu Ana, tampouco Henrique VIII, tendo nascido décadas após suas mortes.
Mito n2: Ana de Cleves cheirava mal.
Resposta: Inconclusivo.
Após sua noite de núpcias, Henrique VIII mencionou que, um dos motivos que o levou a desgostar de Ana, foi o fato de que a mesma ”cheirava mal”. No entanto, temos que ter em consideração que, a opinião de Henrique acerca de sua nova consorte, era em muito, pautada pelo desgosto do mesmo em ter que realizar um matrimônio de caráter político. Um dos fatores que nos leva a questionar tal consideração, é que, durante esta época, Henrique VIII possuía uma úlcera supurada em estágio avançado em uma de suas pernas. De acordo com o historiador Eric Ives, o processo inflamatório na panturrilha de Henrique, foi ocasionado devido a um quadro de osteomielite, desenvolvido pelo monarca, após sua queda de cavalo, durante uma justa ocorrida no ano de 1536. Por conseguinte, o odor exalado por esta perna nunca curada, era forte, sendo comentado por alguns de seus contemporâneos e constando em registros médicos da época.
Em outra análise, o odor corporal de Ana, mencionado pelo monarca, também poderia ser devido aos cuidados da mesma, em relação à depilação e higiene das regiões como as axilas. Isso poderia ter ocasionado nela – assim como em muitas outras mulheres e homens do período – algum tipo de odor corporal mais destacado – uma vez que o excesso de pelos nesta região, promove (seguido do processo de suor), um ambiente mais propício ao desenvolvimento de odores corporais. Ela também pode ter utilizado algum perfume estrangeiro (uma vez que era alemã) que desagradou o monarca que, já irritado em ter que assumir um casamento indesejado, talvez tenha visto nisso, um motivo para criticá-la.
Mito n3 – Ana de Cleves não era virgem.
Resposta: Falso.
Na manhã seguinte à noite de núpcias do casal, Henrique VIII havia comentado com seus médicos, que o matrimônio não havia sido consumado, devido à frouxidão dos seios de Ana e ao fato de ele achar seu corpo tão desordenado e indisposto, que foi incapaz de excitar-se ou ter qualquer tipo desejo. Em um comentário posterior, ao ser indagada sobre seu relacionamento com o monarca, Ana salientou ter tido relações sexuais ele. No entanto, ao ser questionada sobre o caráter destas relações, Ana salientou acreditar ter perdido sua virgindade, apenas por receber um beijo de boa noite do rei. Essa falta de conhecimento acerca do que envolve o ato sexual, conota a não realização do coito per se. Mais tarde, Henrique anulou seu casamento com Ana, alegando que sua união não havia sido consumada, e que a mesma não perdeu a virgindade com ele.
Mito n4 – O pintor alemão, Hans Holbein – o jovem (1497 ou 1498 — 1543), melhorou a imagem de Ana em sua pintura?
Resposta: Falso.
Este foi um boato criado pelo cronista e historiador inglês, Horace Walpole (1717 – 1797); ele mencionara em seus registros que, Ana de Cleves era uma égua de Flanders (pegando emprestado o imaginário criado por Burnet) e não uma Vênus, e que o pintor a havia lisonjeado em seu retrato.
Mito n 5 – Ana vestia-se mal.
Resposta: Inconclusivo.
Ana de Cleves, assim como toda mulher nobre ou de alto status de seu período, procurava vestir-se de acordo com a moda vigente. No entanto, como alemã, ela seguia a moda do local de onde viera, que era distinta da inglesa – uma vez que as roupas possuíam cores mais fortes, e os adereços como penas, correntes e mangas bastante bufantes ou soltas, eram considerados pelos ingleses como sendo excessivos. Deste modo, os ingleses viram neste choque cultural, um sinônimo de mau gosto e/ou falta de refinamento, que não necessariamente condizia com a realidade.
Mito 6 – Ana envolveu-se sexualmente com Catarina Howard.
Resposta: Falso.
Este rumor é relativamente recente, mas ganhou proporções no exterior – especialmente nos Estados Unidos. Ele teve início após o lançamento do romance da escritora, Brady Purdy, intitulado ‘The Boleyn Wife’ (2010). Nele, há um affair lésbico entre Ana de Cleves e a jovem Catarina Howard. Devido a isto, muitos comentários surgiram, inclusive o de que o casamento de Ana com o monarca, não havia sido consumado por causa de sua designação sexual. É necessário mencionar que, Ana nunca demonstrou não querer consumar seu matrimônio com o monarca – o ato apenas não ocorreu devido a vontade do próprio. Portanto, isto é apenas licença poética da romancista, e deve ser encarado como tal.
Mito 7 – Ana tinha sangue real.
Resposta: Verdadeiro.
Ana de Cleves pertencia à Casa Real de Von der Marck, mais popularmente conhecida como La Marck. Seu pai, John III, o pacífico, foi o terceiro Duque de Cleves e Conde de La Marck. Ela também descendia das grandes famílias nobres alemãs, assim como de Eduardo I da Inglaterra (todas as esposas de Henrique VIII descendiam dele) e de monarcas franceses, tendo parentesco paterno com Luís XIII da França.
Mito 8 – O retrato de Ana de Cleves era político e idealizado. Ela não era tão bela quanto fora retratada.
Resposta: Falso.
Esta é uma consideração variante do mito 4, acerca da aparência de Ana em seu mais famoso retrato, o pintado por Hans Holbein, no ano de 1539. Primeiramente, é importante ter em mente que, o conceito do belo é relativo; o que pode agradar a uns, pode desagradar a outros; portanto, esta é uma questão bastante pessoal. É também importante lembrar que, quando Henrique VIII divorciou-se de Ana, ele reclamou amargamente das atividades de seus ministros, porém, nunca da honestidade de Hans Holbein em seu retrato, ou dos esforços de seus embaixadores em descrevê-la fisicamente – significando que a maneira como Ana foi descrita fisicamente por eles, lhe pareceu adequada ou condizente com a realidade que ele vislumbrou ao conhecê-la pessoalmente.
De acordo com a historiadora Retha M. Warnicke, Holbein era conhecido na Corte Tudor, como um artista cujo uma das principais características de seu trabalho, era a clareza e veracidade de suas representações, sustentadas por uma incomum e minuciosa observação da realidade e das características individuais, seguidas de um equilíbrio e uma correta estrutura geométrica de suas composições.
Deste modo, a intenção de Holbein em seu retrato, não era representar uma forma de propaganda política e sim, um retrato fiel da possível futura consorte do monarca inglês.
Mito 9 – Ana havia sido prometida em casamento para outra pessoa.
Resposta: Verdadeiro.
Um dos argumentos utilizados para a anulação do casamento de Henrique VIII com Ana, foi um suposto pré-contrato entre Ana e Francis de Lorena. De fato, John, o pai de Ana, havia realizado um contrato para sua união com o Duque de Lorena, mas este foi rompido após sua morte, quando o irmão de Ana assumiu como o novo Duque de Jülich-Cleves-Berg, em 1538. O conselho de Henrique VIII havia tocado nesta questão em 1540, momento em que o monarca quis esquivar-se de seu enlace com Ana. Porém, os embaixadores do Duque, garantiram que o contrato já havia sido desfeito há muito tempo atrás.
Mito 10 – Ana era uma luterana convicta.
Resposta: Inconclusivo.
Sabemos que a mãe de Ana, Maria de Jülich-Berg, era uma católica devota. Embora a pesquisadora inglesa, Alison Weir, tenha dito que ”a filha de Henrique, Maria, havia ficado consternada ao saber que seu pai estava se casando com uma herege luterana” e sobre como Maria foi “parcialmente responsável pela conversão de Ana à fé católica”, não podemos ter certeza sobre a natureza de suas crenças religiosas, uma vez que ela se converteu ao catolicismo mais tarde em sua vida. Dizem também que ela foi adepta à reforma durante o reinado de Eduardo VI, e que no reinado de Maria, passou novamente a comportar-se como uma católica. O mais provável é que, diante do contexto-político religioso pelo qual o reino atravessava no pós-cisma, Ana tenha resolvido trabalhar em prol das circunstâncias, utilizando a fé como um alicerce à sua diplomacia pessoal.
Mito 11 – Ana foi à a única esposa que sobreviveu a todas as outras.
Resposta: Verdadeiro.
Sim, porém não a esposa que viveu mais. Neste caso, foi Catarina de Aragão, que morreu com 50 anos, enquanto Ana, morreu com 41.
Mito 12 – Ana de Cleves era feia.
Resposta: Pessoal.
Conforme mencionado acima, o conceito do belo, é deveras subjetivo, e assim foi, igualmente no período Tudor. Ana Bolena, por exemplo, foi descrita como bela e até medíocre por alguns diplomatas estrangeiros.
Ana de Cleves, por sua vez, foi descrita pelo cortesão e diplomata Nicholas Wotton, como uma beleza que faria bem ao mercado matrimonial. Em janeiro de 1539, Henrique VIII enviou Christopher Mont, um membro da família de Thomas Cromwell, como embaixador na Alemanha, para discutir um possível casamento entre a princesa Maria e William (irmão de Ana), e para julgar a beleza e qualidade da mais velha das irmãs do Duque de Cleves. Ele constatou que ela era de boa estatura, bom comportamento e qualidades honestas, e também reportou que todos elogiaram a beleza da moça – tanto de rosto quanto de corpo. Um deles inclusive disse que ela superou a duquesa [de Milão] ”como o sol dourado fez à lua de prata”, embora existam boatos de que ele não a tenha visto pessoalmente. Considerando a objetividade de traços aplicada em seu retrato, tirem suas conclusões.
Mito 13 – Ana teve filhos com Henrique VIII.
Resposta: Falso.
Henrique teve filhos com apenas 3 de suas 6 esposas: Catarina de Aragão, Ana Bolena e Jane Seymour. Se por um acaso Ana tivesse de fato tido um filho com Henrique, nada o impediria de reconhecê-lo, assim como fez com o filho que teve com sua outrora amante, Bessie Blount – um menino chamado Henry Fitzroy (em tradução literal do sobrenome: filho do rei). Também não existe nenhuma menção de qualquer documento sobre o nascimento de um filho de Ana, algo que certamente seria citado na época.
Mito 14 – Ana esperava casar-se novamente com o Rei após a queda de Catarina Howard.
Resposta: Inconclusivo.
O irmão de Ana, estava disposto à novas negociações maritais com o monarca, após a anulação de seu casamento, seguida da execução de sua quinta esposa, Catarina Howard. Quanto à vontade de Ana, não podemos afirmar, uma vez que não há nenhuma evidência para apoiar este boato, e mesmo que quisesse restabelecer-se como esposa de Henrique após a queda de Catarina Howard, o Rei claramente não estaria disposto a casar-se novamente com ela.
Bibliografia:
WARNICKE; Retha M. The Marrying of Anne of Cleves: Royal Protocol in Early Modern England. Cambridge University Press; 17 de Fevereiro de 2011.
IVES; Eric. The Life and Death of Anne Boleyn. Wiley-Blackwell; 22 de Julho de 2005.
Anne of Cleves – Flanders Mare? Anne Boleyn Files. Disponível em: [https://www.theanneboleynfiles.com/anne-of-cleves-flanders-mare/]. Acesso em 15 de Fevereiro de 2013.
Adorei o artigo! Ana de Cleves é uma das minhas esposas favoritas, eu acho que ela foi uma mulher tão corajosa quanto Ana Bolena e Catarina de Aragão foram! ;D
De fato, ela foi muito corajosa e soube aproveitar ao máximo sua vida após seu casamento, longe de seu irmão que a impedia de fazer o que ela queria, e claro longe do ex marido, com o bônus de ter saido com a cabeça ainda sob o pescoço!hehe…
Mas, se não me engano, não tentaram acusá-la de bruxaria??
Não, pelo que sei, houve um engano entre Ana Bolena e Ana de Cleves, por ambas terem o mesmo nome, mas na realidade quem foi acusada de fato foi Ana Bolena.
Excelente blog, gosto muito da Ana de Cleves, para mim, ela foi a esposa que teve a melhor condução de vida, por que conseguiu anular o casamento, sendo protegida, sem ter que ficar com a doideira de ter um filho homem para ele e pode ter mais autonomia sobre a própria vida