Inicio o artigo alertando o leitor que não tenho intenção de estender-me sobre os cuidados dentários no período Tudor, afinal, este assunto já é abordado neste artigo aqui. No artigo de hoje, faremos apenas uma breve introdução sobre o tema, a fim de ilustrar como Elizabeth I – assim como a maioria das pessoas de seu período – lidou com as dores e problemas dentários.
No final do reinado de Henrique VIII, com o início do plantio de cana-de-açúcar na América e sua exportação para a Europa, o açúcar tornou-se bastante apreciado, porém, na maior parte das vezes, seu consumo estava praticamente restrito à corte. Isto devia-se ao fato de que o processo de refinamento do açúcar era caro e ele por si só escasso, fazendo com que os mais pobres optassem pelo consumo de um açúcar mais bruto ou até mesmo o mel. No entanto, no início do reinado de Elizabeth I, ocorreu o auge até então, do consumo de açúcar na Europa. O açúcar refinado foi enviado em grande massa do novo mundo para a Europa, facilitando o preço e fazendo com que todos pudessem desfrutá-lo, em maior ou menor quantidade.
Mas por que estamos falando sobre isso? Simples. O açúcar foi o fator-chave para o enegrecimento e cáries não apenas dos dentes de Elizabeth I, como também no de todo o povo inglês do período elisabetano. Sim. O açúcar foi um dos grandes ‘inimigos’ do período.
Os elisabetanos gostavam muito de alimentos açucarados; neste período foram desenvolvidos muito mais pratos doces do que nos outros reinados de monarcas Tudor. Embora eles tentassem cuidar de seus dentes, limpando-os sempre, eles não possuíam maneiras eficazes de fazê-lo, não sendo capazes de controlar a cárie dentária. Este fator fazia com que o dente da maioria dos elisabetanos, ficasse amarelado ou em piores casos, enegrecido. Elizabeth, assim como seu povo, era fã devota de um bom doce, era um de seus grandes prazeres, que do meio ao fim de seu reinado, foi mostrando ser também, um de seus grandes problemas.
Do meio ao fim de seu reinado, Elizabeth I sofreu com incessantes dores de dente. Em dezembro de 1578, quando a dor parecia não melhorar, o Bispo Aylmer sugeriu à rainha, que ela poderia por fim à tanta angústia, extraindo o dente problemático.
Elizabeth – assim como muitos hoje em dia – tinha muito medo de extrair dentes, e até então, nunca o havia feito. Para ter certeza que o discurso de seu médico representava falsa bravura, a rainha pediu que ele extraísse um de seus próprios dentes.
A narrativa deste episódio é encontrada em um livro do historiador protestante Strype, intitulado “Historical Collections of the Life and Acts of the Right Reverend Father in God, John Aylmer, Lord Bishop of London, in the Reign of Queen Elizabeth”: –
“O Bispo em uma instância muito estranha, permitiu que um de seus dentes fosse arrancado, uma vez na presença da rainha, para melhor encorajá-la a submeter-se a dor da extração para sua própria calma e benefício posterior. Na realidade, eu acho que ela estava tão inquieta por sua dor de dente, que o caso tornou-se uma preocupação para toda a Corte. Foi no mês de dezembro de 1578, quando ela esteve tão excessivamente atormentada com a dor, que não cessava nem de dia, nem de noite, que ela viu-se forçada a passar as noites sem nenhum repouso; a dor tornou-se tão extrema, que seus médicos foram chamados e consultados. Estes diferiram entre si quanto à causa da enfermidade, sobre quais meios seriam apropriados para serem utilizados. Houve então um médico forasteiro de algum lugar, ao que parece, que terminou com esta angústia. Seu nome era John Anthony Fenotus e os Senhores do Conselho solicitaram, ou melhor, ordenaram que ele desse seu conselho por escrito, para garantir a tranquilidade da Rainha.
Diante disto, ele escreveu uma longa carta em latim. Primeiro, inabilitando-se por vir diante de tão grandes Médicos; e em seguida, prescrevendo diversos remédios. Mas caso o dente fosse oco, o seu conselho foi de que era melhor retirá-lo, com o mínimo de dor. Mas se sua majestade não pudesse submeter-se a tais instrumentos cirúrgicos (parece que ele tinha ouvido algo sobre as aversões da rainha), em seguida, ele aconselhou que o suco de Chelidonius Major, poderia ser colocado no dente e coberto com cera para que não caísse na boca; pois em pouco tempo o dente poderia ser puxado para fora com os dedos, ou a raiz poderia ser esfregada sobre o dente, e teria o mesmo efeito. Mas em suma, retira-lo era o caminho mais seguro; no entanto, a Rainha, como foi dito, era muito avessa a isto, com medo da dor aguda que acompanhava a extração. E parece que foi o Bispo de Londres, que estava presente – e sendo um homem de grande coragem – que a convenceu de que a dor não era tão grande e não devia ser temida, e para isto, ele disse a ela, que deveria observar a experiência nele mesmo, e que ele, um velho homem, não tinha muitos dentes de sobra, mas o cirurgião poderia vir e tirar um de seus dentes (talvez um cariado) na presença de Sua Majestade. Assim, a Rainha foi encorajada a submeter-se à operação.”
É uma imagem no mínimo curiosa, pois naquele momento, a Rainha aterrorizava todos ao seu redor, irritada com a dor e enlouquecida com seus assistentes. Seu sofrimento era, evidentemente, uma fonte de preocupação primordial, não só para os Senhores do Conselho, mas para toda a Corte.
O Bispo ao menos deve ter sido considerado um benfeitor neste dia. Strype, em uma nota de rodapé, chama seu ato de “uma instância ímpar de sua coragem”, embora tenha adicionado o cruel parêntese do dente em questão, tratar-se de um cariado.
Após a remoção de alguns de seus dentes, Elizabeth nunca mais apareceu em público sem chumaços de algodão preenchendo os locais vazios.
Na juventude, Elizabeth possuía dentes bonitos e bem cuidados, o problema com seus dentes foi ocorrendo com o passar dos anos e muitos doces ingeridos.
Embaixadores estrangeiros escreveram relatos (alguns um tanto exagerados) sobre a aparência da rainha. Tentarei focar apenas nos dentes, afinal, a aparência também é assunto para outro artigo.
Um relato do embaixador francês, André Hurault – Sieur de Maisse, em 1597 sobre Elizabeth, diz:
”Quanto a seu rosto, parece bastante envelhecido. É longo, fino e seus dentes são muito amarelos e desiguais em comparação ao que eram antigamente, dizem que o lado esquerdo é menor que o direito. Muitos deles estão faltando, e não se pode compreendê-la facilmente quando fala rapidamente…”
Um relatório feito um ano depois em Greenwich, pelo viajante alemão Paul Hentzner, é menos politicamente tendencioso: –
”Em seguida veio a Rainha, no sexagésimo quinto ano de sua idade, bastante majestosa… Sua longa face é clara, porém enrugada, seus olhos são pequenos, negros e agradáveis, seu nariz é um pouco adunco, seus lábios finos e dentes negros…”

A anedota envolvendo o Bispo Aylmer em 1578, o relato de Strype e a descrição de Hentzner são bem conhecidas, mas não são de modo algum, as únicas referências de seu histórico dentário pessoal. Em uma série de estudos biográficos, a saga de sua dor de dente foi tratada como nada mais do que uma história divertida, e atualmente, documentários televisivos cometem enganos frequentes sobre o assunto, baseados em lendas ou senso comum. Por mais divertido que pareça ser para alguns, não existem registros de que Elizabeth tenha escovado seus dentes com açúcar. Neste artigo, procuramos apresentar uma visão mais abrangente do histórico dentário de Elizabeth, buscando trabalhar com fontes e citações do período.
Durante o período elisabetano, não existiam médicos especializados nos cuidados dentários. Ao invés disto, o atendimento odontológico fora designado por vários profissionais de diversas áreas diferentes.
Na época, os plebeus que precisavam ter um dente arrancado, iam até um cirurgião-barbeiro, boticário ou até mesmo – os mais pobres – a um ferreiro. Porém, quando o consumo de açúcar aumentou, alguns cirurgiões começaram a interessar-se no tratamento de dentes. Os dentes eram retirados usando métodos primitivos que causavam muita dor, embora fosse até aceitável – considerando o nível que uma dor de dente pode alcançar. Embora os métodos fossem primitivos, as pessoas pareciam ter alguma consciência da prevenção de infecções. O atendimento odontológico elisabetano, era conhecido por ser mais seguro quando o álcool estava envolvido.
Sem dúvida, alguma forma de atendimento diferenciado teria estado disponível para Elizabeth I. No entanto, sucumbir a um cirurgião fazia com que alguns monarcas sentissem como se estivessem demonstrando fraqueza, e conforme sabemos diante da crença dos ”dois corpos do rei”, o corpo político de um soberano era perfeito e alheio aos males acometidos pelo corpo natural. Como tal, alguns monarcas muitas vezes optavam pela não-extração de seus dentes, realizando-a apenas em casos de dor extrema. Elizabeth era particularmente contra certos tipos de intervenções médicas, ela era consciente de sua instável posição real, devido ao fato de ser filha de Ana Bolena.
Sobre a experiência de possuir um dentre extraído no período Elisabetano, temos o exemplo de Sir John Digby, que escreveu sobre sua empreitada para o Conde de Salisbury em 1611 (lembrando que o reinado de Elizabeth foi até 1603; ele era um Stuart, mas o tratamento continuou sendo basicamente o mesmo):
”Eu imploro-lhe perdão, no que fui em parte, forçado pela minha indisposição, a extrair meu dente (que inflamou e eu acredito que nenhum dos mais sábios homens compreenda a dor) que irritou meu queixo e a angústia causou um inchaço, e uma extraordinária dor na garganta, que estou estes dois ou três dias apanhado em febre. Eu espero que melhore, embora tenha a cada dia mais, ficado pior.”
Um século após Elizabeth I, Luís XIV governou como rei da França. Ele sofreu com fortes dores de dente durante grande parte da sua vida e em 1685, ele já tinha todos os dentes superiores esquerdos extraídos. Alguns afirmam que as infecções dentárias do rei explicam sua desastrosa decisão naquele ano, ao revogar a liberdade de culto na França, com o Édito de Fontainebleau – um ato que desencadeou uma onda de perseguição brutal contra as minorias religiosas.
Elizabeth I, assim como todas as monarcas de gênero da Europa do século XVI, teve sua vida envolta a mitos. Afinal, naquele período patriarcal, uma mulher ir contra a correnteza, reinando em seu próprio nome, desafiando o esperado ideal de recato e submissão e mudando o modo como a mulher era vista até então, fazia e faz com que uma aura quase mítica fosse envolta à sua imagem. No entanto, claramente, Elizabeth foi uma mulher de carne e osso, sujeita às mazelas e agruras de seu período. É por este motivo que artigos como este são necessários. Eles ajudam-nos a vislumbrar as muitas facetas desta mulher e perceber que, acima de tudo, Elizabeth foi humana, sofrendo com inúmeros problemas cotidianos, como qualquer um de nós.
Muito interessante!
Que bom que gostou Stephanie, seja bem-vinda!
Em 1685 Louis XIV não assinou mas sim revogou o Édito de Nantes, o qual fora instituído no reino de Henrique IV, que possibilitava a liberdade de culto na França 🙂
Sim, você está certo Jefferson, ele revogou o édito, foi um erro de atenção. Desculpe!:)