O que irá ler a seguir, é um conto escrito por um leitor da página Tudor Brasil, este conto é um romance e não tem compromisso com fatos reais:
Ela acordou e logo viu que continuava no pesadelo.
Fechou os olhos, tentando permanecer no sonho onde ainda era a esposa amada de Henrique, mas a fantasia se afastava mais depressa a cada instante, e logo Ana teve uma dolorosa consciência dos lençóis de sua cama na Torre de Londres. Ao seu lado, a senhora Coffin dormia pesadamente, ressonando de leve enquanto a rainha sentava-se na cama e pensava.
1º de maio. O torneio. Ela via o torneio ao lado do rei quando um criado se aproximara deles e falara algo com Henrique. Depois, ele ficara algum tempo parado, em silêncio, observando as justas sem realmente ver. A imobilidade de um homem tão ativo a assustara – assustava ainda. De súbito, ele se ergueu e saiu sem olhar para ela por uma última vez.
No dia seguinte, ela fora presa. Quando a barcaça se aproximara da Torre e atracara para que lá ela descesse, a rainha começou a gritar, porque já entendia seu destino. Apenas o bom Sir William conseguira acalmá-la, garantindo sua permanência nos mesmos aposentos que a haviam hospedado antes de sua coroação, o que lhe pareceu uma graça tão maravilhosa que a fez gargalhar. Ao passar pelo pátio interno, porém, ela sucumbira; caíra de joelhos, as mãos sobre o ventre que tantas vezes falhara em lhe dar um príncipe de sangue real, e gritara em desespero para os céus, implorando por misericórdia e chorando por sua inocência, pedindo aos seus acompanhantes que intercedessem por ela. Poderia Henrique, que já tanto a amara, ser bom para ela uma última vez? Poderia ele se lembrar de quanto a amara?
Lembranças, apenas lembranças. Ana fechou os olhos cheios de lágrimas. Quando os abriu novamente, já não estava sentada em sua cama ao lado da adormecida senhora Coffin, mas rigidamente sentada numa cadeira no centro de seus aposentos na Torre, vestida e penteada como uma rainha deveria estar. Tocou de leve seu olho esquerdo, e percebeu que não havia mais lágrimas.
– Senhora?
Ela olhou para sua tia, que tão recentemente se tornara sua carcereira.
– Está bem? – continuou a senhora Shelton, olhando-a com o cuidado dos espiões e traidores.
Ana assentiu, ausente. Acabara de se lembrar que morreria a qualquer momento. Nos seus aposentos, também se encontravam o guardião da Torre, Sir William Kingston, e sua esposa, Maria, além das senhoras Stoner e Coffin. Todos a observavam com o mesmo olhar da senhora Shelton. Todos eram criaturas de Cromwell.
– Sir Kingston – chamou ela – ouvi dizer sobre a bondade de meu carrasco. Isso é bom. Tenho um pescoço fino, como bem sabe. Henrique me disse tantas vezes que ele era tão belo…
Tendo dito isso, rodeou seu pescoço de marfim, sempre bem erguido, com a mesma mão esquerda que verificara seus olhos à procura de lágrimas. A senhora Coffin desviou o olhar dela, perturbada. Sua tia e a senhora Stoner mantiveram-se firmes, embora suas expressões de alguma maneira tremessem. Maria Kingston continuou a encará-la com uma educada frieza. Seu marido, Sir William, estava desconcertado, olhando-a sem acreditar. Achava que ela estava louca.
Ana também achava.
~~*~~
No início ela não quisera, que Deus fosse sua testemunha, ela não quisera ceder ao rei e se tornar sua amante, como sua irmã fizera antes dela. A paixão dele começara no carnaval de 1526, e rapidamente, tão perigosamente, começara a transpirar nas cartas de amor que escrevia para Ana, então uma jovem dama de companhia da rainha Catarina. Ela fugia, esperando fazê-lo desistir pela frustração, mas Henrique continuava a persegui-la enquanto 1526 passava e ameaçava se tornar 1527. A violência de sua paixão a deixava tonta de desejo, mas ela ainda não se esquecera da lealdade que devia à sua patroa, aquela princesa espanhola que só conseguira gerar uma única filha que vivesse além da infância. Ele a perseguia, a tentava, a dominava. Um dia, ela cedeu, e o beijo fora tão doce e completo. Ela o queria tanto quanto ele a desejava, e poderia tê-lo deixado fazer o que queria naquele dia tão longínquo que ele a tocara pela primeira vez, mas não pudera. Lembrou-se das duas crianças que ele gerara em sua irmã, bastardos legitimados por um casamento falso, filhos que ele não via nem considerava. E decidira, naquele momento, que não era o que queria para si.
Em maio de 1527, ele solicitara o divórcio. Seu casamento com Catarina era pecaminoso, dizia ele, porque ela pertencera ao seu irmão Arthur antes dele, e o Levítico dizia que uniões assim não gerariam filhos homens. Ele estava convencido que Catarina concordaria, e assim eles poderiam se unir e produzir o herdeiro que ele tanto queria.
Mas Catarina lutara. Lutara por anos. Jurara que o casamento com Arthur jamais fora consumado, que Deus fosse seu juiz, ela saíra daquela união como era no ventre de sua mãe – incorrupta. Quando Henrique a tivera pela primeira vez, a conhecera como a donzela que era, não tendo sido tocada por homem algum. Ele o sabia em sua consciência, dissera ela, mesmo que Henrique sussurrasse para Ana, entre beijos e juras de amor, que não. Seu primeiro casamento fora pecaminoso, jurava ele, e apenas com uma união legítima ele poderia ter um filho que herdasse a Inglaterra. Gerado no ventre dela, sua verdadeira e única esposa. Rainha Ana. Mesmo com Catarina lutando e jurando que jamais pertencera a outro homem que não ele, Henrique continuava otimista que o papa lhe daria uma anulação do primeiro casamento. Em breve nos casaremos, ele dizia sempre enquanto a acariciava e Ana sentia o desejo vibrar entre ambos, e a coroarei como minha rainha. Você terá meu filho.
Naqueles momentos, tudo parecia perfeito. Mas não acontecera. Não naquele ano, nem no seguinte, nem no outro. Então, finalmente, Henrique resolveu o assunto por suas mãos… por ela. Ele a fez marquesa de Pembroke para que viajassem a França juntos e, lá, ela foi tratada como rainha da Inglaterra em tudo. Em tudo, menos no que importava.
Foi numa noite de tempestade e vento que ela tomou sua decisão. Quando ele a procurou em seus aposentos em Calais, ela se despira e deixara que ele a tivesse pela primeira vez. Enquanto ele beijara e tocara toda ela, Ana fechara os olhos, esperando e rezando por um filho.
Pouco tempo depois, ela estava grávida. Contou para Henrique com lágrimas nos olhos. Ele também chorara, emocionado, e jurara que antes que aquele filho viesse à luz ela já seria sua legítima esposa e rainha. E assim foi. Quando suas dores começaram, ela já fora magnificamente coroada na abadia de Westminster e fora tratada por todos como a rainha da Inglaterra enquanto seu ventre crescia cada vez mais e a antiga rainha era esquecida. Quando o bebê nasceu, devia ter sido sua apoteose, seu momento de glória e a certeza enviada por Deus que seu casamento com Henrique era abençoado.
Mas era uma menina. Ana a nomeou em homenagem à herdeira dos York e mãe do rei para tentar impedir aquele terrível olhar de decepção de seu marido. Foi em vão, embora ele a tivesse depois abraçado e jurado que jamais a abandonaria. Muitos filhos saudáveis se seguiriam à Isabel. Ele sabia disso com todo o coração. Quando engravidara poucos meses depois, Ana também acreditara. Que fosse novamente uma menina, não importava. Ela e Henrique eram jovens e férteis, ainda poderiam ter muitos príncipes. Tudo o que importava era que ela desse à luz uma criança saudável para manter a confiança de seu marido nela.
Quando aquele príncipe nascera morto, todos os fantasmas de Catarina de Aragão voltaram subitamente a assombrar a câmara da rainha. Pela primeira vez, Henrique estava de fato insatisfeito com ela. Apenas a procurava para cumprirem seus deveres conjugais, mas sem aquela paixão que sempre existira entre eles, e suas conversas eram sempre marcadas pela decepção dele. Henrique queria dela um príncipe que sobrevivesse. O destino da princesa viúva de Gales estava ali entre eles para lembrar Ana do que ocorreria se ela falhasse, junto com o cheiro de sangue dos traidores que impregnava toda a Inglaterra. Quando ela confirmara uma terceira gravidez, o alívio fora sublime. Daquela vez, ela tinha certeza que conseguiria. Era o príncipe que prometera a Henrique, o príncipe que tanto queriam. Eduardo. Nada impediria aquilo, nem mesmo a nova paixão de Henrique por uma dama de companhia de Ana. Toda a corte já o sabia, mas a rainha tinha que fechar os olhos. Não duraria muito tempo. Jane Seymour era uma criatura frágil e pálida, desinteressante demais para o rei. Certamente era o interesse passageiro do novo, como acontecera algumas vezes antes. Mas seria Ana que daria a luz seu filho e herdeiro muito em breve, e apenas isso importava. Eles ainda se amavam. Tudo ficaria bem.
Então houve aquele acidente na justa, e ela achara que seu Henrique estava morto. Ela chorara em desespero e pânico naquelas horas de pesadelo. Isabel era apenas uma criança, como poderia ter forças para reinar até que seu irmão nascesse? Uma regência seria necessária, mas como ela poderia governar com tantos contra ela? Ela sabia que apoiadores da filha de Catarina ainda existiam. Tentariam colocá-la no trono ao primeiro sinal da morte de Henrique, certamente, mas ela não o podia permitir. O trono era a herança de seus filhos, tudo pelo qual era lutara tanto, sacrificara tanto. Não podia permitir que tudo lhe fosse roubado.
Henrique acordara, pela graça de Deus, mas tudo fora perdido para Ana da mesma forma. Quando o sangue começara a lhe escorrer das pernas e as dores de uma irreversível perda começaram, ela soubera que tudo acabara junto com a morte de seu filho. O olhar frio de Henrique quando fora visitá-la o confirmara. Não haveria mais beijos e carícias. O amor fora perdido junto com aquele príncipe. Ele acomodara Jane Seymour, aquela criatura frágil e pálida, em aposentos próximos aos seus em Greenwich, e todos na corte sabiam que ele a visitava. Ana esperava apenas a notícia da gravidez dela para que o pedido de anulação ocorresse. Sua Isabel seria uma bastarda como Maria, e tudo teria sido em vão quando Ana fosse afastada como Catarina fora antes dela. Então, no exílio, ela saberia quando Henrique finalmente tivesse seu herdeiro.
Mas fora mais rápido e pior do que imaginara. No primeiro dia de maio, ela fora presa e levada para a Torre, e então, tão tarde, entendera que Henrique precisava dela morta para realizar um novo casamento; não poderia arriscar qualquer resistência. Seu julgamento, poucas semanas depois, fora o vendaval de acusações que ela esperava, incluindo a dolorosa denúncia de incesto com seu irmão George. Condenada por todos os juízes, incluindo seu tio, ela seria executada de acordo com a vontade do rei. Ana não admitiu ser culpada, mas aceitou que merecia ser punida – depois, ela viu como aquela tentativa de obter misericórdia do rei fora pífia. Henrique não a pouparia. Ele não poderia poupá-la depois de dividir a Inglaterra pela promessa de um filho que ela jamais pudera realizar.
E agora ali ela estava, à beira do sacrifício.
– Senhora? Senhora?
Ana saiu do delírio e olhou para sua dama de companhia, iluminada de leve pelo sol daquela manhã.
– Senhora Coffin.
– Devemos ir, senhora.
A rainha olhou para o gramado. Havia uma pequena multidão agrupada ao redor de uma plataforma de madeira erguida para a execução. Lá, seu carrasco já a aguardava.
Subitamente, sentiu-se alegre. Alisou sua túnica e ergueu seu pescoço para melhorar a compostura. Começou a andar até o gramado com passos firmes. Em breve, estaria livre de tudo. Faltava pouco. Chegou à plataforma e subiu os degraus ao encontro do carrasco. Ele a saudou levemente com uma breve mesura. Aquilo lhe deu coragem para se dirigir à multidão.
– Senhores – começou ela, sorrindo – aqui me submeto humildemente à lei, tal como a lei me julgou. Quanto aos meus crimes, não acuso ninguém. Deus sabe quais são eles. Submeto-os a Deus, implorando que Ele tenha piedade de minha alma. Que Jesus Cristo salve meu soberano e senhor, o rei, o mais divino, nobre e gentil príncipe que existe, e que reinará sobre os senhores por muito tempo.
Então, a rainha Ana se ajoelhou. Sentiu quando retiraram sua touca e seu colar. Ela mesma deslizou seus anéis pelos dedos. Quando esticou o braço para passa-los às damas, notou, sem surpresa, que elas soluçavam. Lady Shelton tinha lágrimas escorrendo pelo rosto. Ana agradeceu em voz baixa e voltou-se para o céu.
Ela sentiu quando o carrasco se ajoelhou ao lado dela.
– Perdão, madame.
A rainha assentiu, já de olhos fechados e rezando. O carrasco se ergueu. A Jesus Cristo recomendo minha alma, sussurrou ela, sentindo o coração acelerar. A Jesus Cristo recomendo minha alma.
– Traga-me minha espada! – gritou o carrasco para alguém atrás deles.
Ana girou a cabeça instintivamente. A Jesus Cristo recomendo…
De repente, era o paraíso.
CONTO ESCRITO POR: Fernanda Pissurno.
Lindo conto amei