O Homem por detrás da Fera – A Vida de Petrus Gonsalvus

O artigo sobre Petrus Gonsalvus – portador de Hipertricose do século XVI – e sua esposa Catarina, foi um enorme sucesso, graças à vocês. No entanto, por tratar-se uma leitura bastante resumida, vi que alguns aspectos da vida de Petrus, despertaram dúvidas em alguns leitores. Por este motivo, resolvemos pesquisar mais aprofundadamente sua vida e transformar tal resultado, em um artigo para sanar a dúvida dos leitores. Espero que gostem!

Mas afinal, o que é hipertricose?
Hipertricose, é um termo utilizado para designar pessoas portadoras de uma anomalia extremamente rara, que causa o crescimento excessivo de pêlos no corpo humano. As pessoas acometidas por este distúrbio apresentam a pele toda coberta de pêlos – em maior ou menor quantidade -, exceto nas palmas das mãos e pés. Poucos casos de Hipertricose – cerca de 50 -, sindrome-do-lobisomem-3foram relatados desde a Idade Média.

A causa pode ser encontrada em uma alteração genética de certos cromossomos, uma peculiaridade no DNA, podendo ser na maioria das vezes, adquirida através de herança familiar. Tal hereditariedade, faz com que seja normal que em algumas famílias, existam diversos integrantes com esta alteração – visto que existem 50% de chances, de que o descendente possua tal síndrome. Porém, é interessante ressaltar, que nem sempre as mutações ocorrem de forma hereditária, mas espontaneamente – embora seja ainda mais raro.

Historicamente, ela foi conhecida como “síndrome do lobisomem” e até “síndrome de Ambras” – em homenagem a um castelo perto de Innsbruck, capital do Tirol, onde foram descobertos os retratos da família Gonsalvus – ainda preservados na “Câmara de Arte e Curiosidades”. Existem duas variações da anomalia:

– Hipertricose Lanuginosa Congênita: O pêlo é relativamente fino e felpudo e pode chegar a 25 cm de comprimento.

– Síndrome de Abras: Nesta variante, o pêlo é mais grosso, é colorido, e cresce durante toda a vida.

Além da exagerada presença de pêlos no corpo, as pessoas que sofrem desta síndrome não possuem nenhuma outra alteração, ou seja, a expectativa de vida e as chances de ficar doente, são as mesmas de uma pessoa normal. Sua maior complicação, de fato é sua aparência perante a sociedade, pois a pessoa que sofre deste distúrbio, geralmente fica isolada, é discriminada e maltratada física ou psicologicamente.

Aparentemente, Petrus Gonsalvus e sua família, são os casos mais antigos documentados de Hipertricose na Europa. Esta anomalia, pode ser encontrada em pequenos grupos étnicos negros e asiáticos, sendo menos comum no norte da Europa e ocorrendo com maior freqüência na região do Mediterrâneo, local de onde Petrus originara-se. Portanto, não é difícil entender, porque Petrus e seus descendentes, chamaram tanta atenção na Europa. É importante notar, que na Europa do século XVI – devido a falta de conhecimentos sobre tal anomalia -, viam as pessoas portadoras de Hipertricose, como pouco humanas.

Início da vida:
Petrus Gonsalvus – ou Pedro González -, nasceu em 1537, no Tenerife – Ilhas Canárias. Embora não saibamos muito sobre seus pais, sabemos que ele foi descendente de um Mencey dos Guanches.

Guanche.
Guanche.

Os Guanches, eram os antigos habitantes do Tenerife, antes da conquista da ilha por parte da Coroa de Castilha, em 1496. Um Mencey, era a figura mais importante e proeminente deste grupo. Na época da conquista espanhola, o Tenerife estava dividido no que era conhecido como nove ”menceyatos” – regiões separadas na ilha, cada uma governada por seu próprio Mencey. Seus nomes eram: Anaga, Tegueste, Tacoronte, Taoro, Icod, Daute, Adeje, Abona e Güimar – provavelmente, Petrus descendia de Taoro. Apesar do fato de todos os Menceys serem independentes e proprietários de seus territórios na ilha, era o de Taoro, que atuava de acordo com as crônicas, como líder maior.

Sabemos pouco ou quase nada sobre seu pai, apenas que aos dez anos de idade – em 1547 -, ele entregou Petrus como um presente para Carlos V – Sacro Imperador Romano-Germânico -, na Holanda. Porém, durante sua incursão, corsários franceses capturaram o navio pelo qual Petrus chegaria ao continente, e o enviaram ao Rei Henrique II da França.

O corpo e principalmente rosto de Petrus, eram cobertos por espessos pêlos de tonalidade vermelho-escura, porém, mantendo seu belo rosto, harmonioso e angular – conforme relatam as crônicas do período. A Hipertricose, ou Síndrome de Ambras, atualmente é uma condição

Henrique II da França.
Henrique II da França.

conhecida e estudada pelo homem, porém, no século XVI, ela era algo totalmente impensável e assustador.

Ao chegar na Corte de França, Petrus despertou quase instantânea curiosidade da esposa do monarca, Catarina de Médici. Catarina era conhecida por suas excentricidades e interesse no exótico. Ela interessava-se desde astrologia, até leitura da sorte, profecias – feitas por Nostradamus – e claro, em peculiaridades humanas, como anões e pessoas com alguma condição especial. Claramente, a chegada do menino provocou enorme interesse não apenas na Rainha, como no Rei e cortesãos, que acreditavam que Petrus fosse algum tipo de exótico animal de estimação. Ele cresceu na corte, sobre o nome de Dom Petrus Gonsalvus, devido às suas origens nobres de Tenerife. É importante destacar, que mesmo com tal singularidade, Petrus Gonsalvus foi considerado um homem bem sucedido.

Em 1557, o primeiro relatório formal apareceu – escrito por Júlio César Scaliger. Em seu relatório, ele referiu-se ao rapaz como Barbet – o mesmo nome usado para identificar uma raça de cão desgrenhado. Um segundo relatório – no mesmo ano -, confirma a chegada de Petrus em Paris e afirma que o Rei Henrique ordenou que o menino recebesse uma educação formal – não por gentileza e sim, curiosidade. O rei acreditava que Petrus era um selvagem e incapaz de aprender. Seu progresso foi monitorado de perto e ele provou que o Rei estava bastante enganado, pois não apenas aprendeu o básico, como tornou-se exímio em etiqueta e estudos da nobreza. Ele também tornou-se bastante fluente em latim, francês e italiano e passou a usar esplêndidas vestes, que realmente acentuavam seu rosto com pêlos. Foi deste modo, que Petrus viveu como um convidado na Corte – fazendo com que curiosos olhares de dignitários e embaixadores reais, sempre mirassem em sua direção. Ele tornou-se um grande trunfo para a Corte de Henrique II e fora recompensado por seu satisfatório serviço.

Casamento:
Conforme os anos iam passando e Petrus transformando-se em um robusto homem da Corte, Catarina de Médici, a Rainha-mãe, começou a interessar-se na possibilidade de que seu jovem púpilo, contraísse uma união marital. Novamente, não foi um ato de gentileza ou bondade, ela estava interessada em saber como seriam os filhos deste homem, ou até mesmo, se poderia

Catarina de Médici.
Catarina de Médici.

tê-los. A escolhida foi Catarina, filha de um serviçal da Corte e a mais bela dama de seu séquito real. O casamento ocorreu em meados de 1573, quando Petrus estava com 17 anos de idade.

Dizem que no momento em que a jovem descobriu que Petrus seria seu marido, desmaiou em sua presença. No entanto, apesar do espesso pêlo escuro e avermelhado que cobria seu rosto, Petrus possuía classe e dotes de um verdadeiro príncipe dos contos de fadas. Ele possuía um físico impressionante, robusto e esbelto, característica dos guanches, a quem descendia. É assumido que o desmaio e susto inicial de Catarina, devem-se ao choque do casamento-surpresa forçado, pois após alguns anos de união, eles parecem ter sido felizes. Em meados de 1581, ele já era pai de dois filhos – em um total de sete.

Para a alegria da rainha, 4 de seus sete filhos, possuíam hipertricose, fazendo com que a família Gonsalvus, fosse um dos assuntos do período. Sua família fez algumas viagens pela Europa em 1581 e em 1582, seus retratos foram pintados em Munique, por ordem do Duque Albrecht IV, da Baviera. Em 1583, a família Gonsalvus foi para Basileia, onde foi estudada pelo famoso anatomista Felix Plater, que publicou um detalhado relato de sua visita, em sua obra ‘observationum’, assim como outros registros mais superficiais, seguindo as viagens da família até o início de 1590. Após a morte de Catarina de Médici, em 1589, Petrus e sua família, deixaram definitivamente a Corte francesa, permanecendo então, na Corte italiana de Parma.

No meio de 1590, em Bolonha, mais registros detalhados, em grande parte sobre informações da família – como por exemplo, a filha com hipertricose de oito anos de Petrus -, foram objeto de estudos pelo Conde Aldrovandi. Ele também encomendou um desenho da família, que agora inclui Petrus, seu filho de vinte anos e suas duas filhas mais novas.

Separação da Família Gonsalvus:
À partir deste momento, a família pareceu dilacerar-se. Os filhos de Petrus, após uma viagem de família à Corte – presumidamente de Parma – , foram separados e dados de presente, à cortesãos europeus – como bichos de estimação – e

Catarina Gonsalvus, esposa de Petrus.
Catarina Gonsalvus, esposa de Petrus.

espalhando-se pela Europa. Uma menina de nome Tognina Gonzales – presumidamente a filha mais nova de Petrus -, chamou atenção do público e do naturalista Ulysses Aldrovandi, que alegou em sua obra ”Historia monstrorum”, que a jovem eventualmente casou-se na Corte de Parma, tendo inúmeros filhos. É importante destacar, que apalavra latina “monstrum”, não carregava a conotação negativa atual e sim, algo como, excepcional e fora do comum.

O homem da Floresta – como Petrus passou a ser conhecido pelo médico Ulisse Aldrovandi -, passou a experimentar à partir de então, a dor de carregar seu fardo. Apesar das inúmeras tentativas de levar uma vida normal e agirem como nobres, eles sempre viam-se explorados por um público que os via como uma aberração da natureza. Aos olhos contemporâneos, Gonsalvus e seus filhos, não foram considerados totalmente humanos. Não sabemos se Petrus e sua esposa Catarina, tentaram impedir tal tragédia de separarem-se de seu filhos. É difícil saber. No entanto, há alguns registros de que eles preocupavam-se com eles, uma vez que pouco antes de sua morte, Petrus e sua esposa, estavam presentes no batismo de seu neto, em 1617.

Últimos Anos e Morte:
Pelos próximos 40 anos, os membros da família Gonsalvus, subiam e desciam pelo curso da história, fazendo breves aparições em Cortes nobres pela Europa. Considerando sua original condição, é incomum que não existam mais registros e contas do período. Sabemos no entanto, devido à registros italianos, que ele e sua esposa, estabeleceram-se definitivamente 893a210ed45c305ffef6b77c48f7d18fem Capodimonte, no Lago Bolsena (Viterbo), onde ele morreu em 1618, em meados dos 81 anos. Mais detalhes sobre sua vida, podem ser encontrados nos ‘Arquivos do Vaticano e Arquivo do Estado de Roma e Nápoles’. Petrus, que viveu uma vida tão agitada em meio ao coração das mais nobres cortes européias, terminou seus dias, na tranquilidade do lago de Lazio – longe do clamor das cortes reais.

Sua esposa Catarina, faleceu pouco depois, em 1623. Permanece desconhecido o que aconteceu com os descendentes de Petrus. A última menção histórica de um Gonsalvus, pode ser encontrada em uma lápide atribuída a Horatio Gonzales – um provável descendente de Petrus – entregue a um certo Mercurio Ferrari, em 1635, na qual podemos ler: –

Aqui você encontra Gonzales, outrora famoso na Corte de Roma,

Cuja face humana, foi coberta com pêlos, como o de um animal.

Ele viveu por você, Ferrari, juntando-se a ti em amor,

E no retrato ele sobrevive, ainda respirando, embora morto.


O Conto da Bela e a Fera:
Os contos de fadas, sempre estiveram profundamente ligados em torno do mito “Cupido e Psiquê”. Conforme mencionado em nosso último artigo, o incomum relacionamento de Petrus com sua esposa Catarina, é popularmente comparado com o conto beauty_and_the_beastde “A Bela e a Fera”, do qual possuí claras semelhanças. O conto, escrito em 1550, pelo italiano Gianfrancesco Straparola e em seguida, pelo francês Charles Perrault – no final de 1600 -, segundo muitos estudiosos, foi claramente inspirado em Petrus Gonsalvus, tendo porém, algumas origens na literatura grega clássica – lembrando a obra do filósofo e escritor grego Apuleio, “Metamorfoses” – Metamorphoseon Libri XI.

Tendo em vista que Petrus – assim como sua família -, era bem conhecido nas Cortes européias do renascimento, não é impossível supor, que Gianfrancesco Straparola tivesse ouvido falar em sua existência e casamento, ou que ele houvesse conhecido o famoso escritor Giambattista Basile – que incluiu vários contos sobre animais e humanos, em sua coleção no final do século XVII.

Para ler sobre o Conto da Bela e a Fera e relacionamento de Catarina e Petrus: Acesse.

FONTES:
Tales of Faerie: AQUI.
Derm: AQUI.
The Human Marvels: AQUI.
Duerighe: AQUI.


1 comentário Adicione o seu

  1. Ana Beatriz Carvalho disse:

    Excelente! Adorei saber de toda essa história que é background para um dos meus contos favoritos.

    OBS: Se Petrus nasceu em 1537, no ano de seu casamento (1573) estava com 36 anos e não 17 como diz o artigo.

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