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Antes de falar sobre as mulheres no contexto definido didaticamente como Antigo Egito, consideramos importante situá-los geograficamente e temporalmente. A sociedade egípcia ocupou a região do nordeste africano, às margens do Rio Nilo, no período compreendido entre os anos de 3.200 a.C a 32 a. C. Em razão de a região ser próxima ao deserto do Saara, o Rio Nilo se tornou o principal recurso natural para os egípcios, sendo responsável tanto pelo transporte e escoamento de mercadorias, como para a agricultura e pesca. Para fins didáticos, a história do Antigo Egito recebe as seguintes subdivisões: Antigo Império (3.200 a.C a 2.100 a.C), Médio Império (2.100 a. C a 1580 a.C) e Baixo Império (1580 a. C – 715 a.C). O mapa adiante nos possibilita ter uma visão geral da região do Rio Nilo.
A sociedade egípcia era estruturada em torno da figura do Faraó, este era responsável pelas decisões políticas, função religiosa e pela condução das decisões públicas. Para esta sociedade, o Faraó era considerado um filho dos deuses, e em virtude deste aspecto, sua figura era cultuada e venerada por todos. Ao realizar uma relação com uma pirâmide social, o Faraó ocuparia o seu topo, sendo que, abaixo dele viriam os nobres, sacerdotes, soldados, escribas, comerciantes, artesãos, camponeses e escravos.
É no interior deste universo social, que selecionamos como objeto de análise a mulher. Mediante a utilização de autores que abordam esta temática, indicaremos o lugar e papel da mulher na sociedade faraônica. A pesquisadora Glória Maria D. L. Pratas, destaca em suas pesquisas que, durante os séculos, estudiosos de várias partes do mundo, sobretudo, antropólogos e historiadores, tentaram entender a sociedade do Antigo Egito. Não obstante, tal ação não vem sendo uma tarefa fácil. Em sua maioria, as fontes encontradas referem-se à hieróglifos, papiros e inscrições em tumbas, além dos registros pictográficos (imagens) ainda existentes e preservados, situados nas ruínas do que restou desta civilização. Ainda de acordo com Pratas, cerca de 90% da população era camponesa, todavia, são raros os registros localizados sobre este segmento da sociedade, sendo em sua maioria encontradas fontes de reis e nobres. Deste modo, é através da localização destes fragmentos que os pesquisadores tentam conhecer um pouco sobre a história e trajetória deste povo. Ainda, nas palavras da autora:
É fato que se descobriu mais sobre a história egípcia por meio da morte, do que da vida, decorada precisamente no esplendor das suas tumbas. Essa arte, considerada documento histórico, foi preparada e pintada nas paredes tumbárias, durante a vida de seus futuros ocupantes, retratando seus feitos, juntamente com a história peculiar da época. Os responsáveis por essa fascinante história, descrita em papiros e óstracos (fragmentos de cerâmica ou pedras que contêm palavras ou outras formas de escrita gravadas), de valor inestimável, foram os escribas. (PRATAS, p.2, 2011)
Foi através do acesso a estes registros, que hoje podemos conhecer um pouco sobre as mulheres que viveram há milênios atrás. Nos registros relacionados a produção dos escribas, temos várias menções a maneira pela qual a mulher era representada. Os escribas eram profissionais que se dedicavam a documentação da vida e trajetória dos Faraós, dos acontecimentos sociais, como os elementos culturais, normas, crenças, e inclusive faziam a contabilidade e redigiam as leis do estado. Em nossa pesquisa, encontramos certa dificuldade em precisar se a mulher poderia ocupar a função de escriba. Vários pesquisadores divergem quanto a isto. O que podemos afirmar, é que na maioria dos casos, eram os homens que usualmente ocupavam esta profissão, embora tenham existido mulheres que tiveram a oportunidade de atuar como tal. Independente do gênero este era um cargo muito ambicionado pelos jovens, devido ao status social que o mesmo poderia obter. Isto é, o escriba tinha a oportunidade de circular entre a alta cúpula política, relacionar-se com o Faraó, e por conseguinte, ter acesso aos sacerdotes e juristas. Para tornar-se um escriba, era necessário um rígida preparação intelectual, haja vista a necessidade de relacionar-se com os indivíduos do topo do pirâmide social, e diante da responsabilidade de produzir seus registros.
Na literatura escriba, as mulheres são comumente retratadas em suas tarefas domésticas, tais como, cuidado com a família, trabalhos de tecelagem e no campo. Também é comum a identificação de imagens em que as mulheres participam rituais religiosos e funerários. Em virtude deste aspecto, durante muito tempo pesquisadores acreditaram que as mulheres do antigo Egito exerceram tão somente o papel submisso na sociedade, sendo relegadas a elas apenas as tarefas do lar. Algumas mulheres foram destaque na condução política, dentre os quais podemos fazer menção à Cleópatra, que foi responsável por comandar o Egito, por volta de 51 a.C, Hatshepsut, que foi uma grande esposa real e regente do Faraó, no século XV a.C, e Nefertiti, que foi a principal esposa do Faraó Amenófolis IV. Paradoxalmente, foi em razão das pesquisas que comprovavam a existência de uma hierarquia social rígida na sociedade egípcia, que alguns estudiosos resolveram aprofundar-se nos estudos a respeito do papel da mulher. Se a mulher era retratada na maioria das pinturas em atividades relacionadas à vida doméstica, então a existência de mulheres que exerceram poder político foram apenas casos isolados?
Em seu trabalho, Pradas afirma que através de um olhar mais aguçado às fontes, pode-se concluir que de fato havia uma estrutura social hierarquizada, constituída por critérios econômicos e religiosos; todavia, o estatuto da mulher e sua posição na sociedade, exerceu um caráter bem próximo ao do homem. Ambos os sexos eram responsáveis pela divisão do trabalho, os homens eram responsáveis pela caça e pesca, e as mulheres ao cultivo no campo e as tarefas domésticas. A autora reforça que, muito embora tenhamos a noção de que a mulher na Antiguidade detinha condições de vida muito inferiores ao homem, tal perspectiva não se insere quando aprofundamos no exame da mulher do Egito, haja vista que:
Apesar da discriminação sofrida pelas mulheres ao longo da história, a figura feminina no Egito, se comparada a outras civilizações antigas, com certeza gozava de uma posição social e jurídica privilegiada. Os textos jurídicos encontrados, tratam do casamento, da gestão dos bens, sem esquecer o divórcio, o futuro do patrimônio dos filhos e as questões de herança. (PRATAS, p.6, 2011)
Morley e Salariya (1999, p. 34) fazem referência a essa questão: “as mulheres eram bem tratadas no antigo Egito. Elas podiam receber uma remuneração e ter propriedades”. Porém, elas não devem ser vistas como um grupo homogêneo, pois enquanto as da elite tinham amplos poderes legais, o mesmo não ocorria com as mais humildes (processo comum na maioria das sociedades). Contudo, para Morley e Salariya (1999) a lei egípcia reconhecia seus direitos e elas podiam ir aos tribunais reclamá-los, caso sentissem que estavam sendo tratadas de modo injusto.
Conforme os fragmentos anteriores, a mulher egípcia gozava de direitos jurídicos, todavia, é preciso reforçar o aspecto de que trata os pesquisadores, isto é, as mulheres de classes mais abastadas usualmente tinham maior possibilidade de ter acesso a vários recursos que as mais humildes dificilmente teriam, tais como possibilidade de acesso à educação. Deste modo, a sociedade não pode ser compreendida de modo homogeneizado, sendo relevante identificar a multiplicidade de suas dinâmicas internas. Sendo assim, as mulheres de classe mais abastada, tinham maior acesso a recursos para conduzirem as suas vidas, e por conseguinte, oportunidades. Em outra perspectiva, os estudiosos concordam que, em qualquer classe social do Antigo Egito, as mulheres eram as principais responsáveis pelo cuidado com o lar, com os idosos e filhos. Considerando assim, que estas eram mais sobrecarregadas em suas responsabilidades.
Na obra intitulada “As mulheres na História”, o pesquisador português José Nunes Carreira, faz menção a exaltação da figura da mulher pelos diversos faraós ao longo da história do Egito Antigo. Segundo o autor, não devemos concluir que o fato de encontrarmos em maior medida, imagens e registros que ressaltem a mulher em atividades voltadas para o cuidado com o lar e família, como algo que revele sua

inferioridade. Para ele, o fato da figura feminina encontrar-se disseminada em inúmeras tumbas, literaturas, imagens e artefatos revelam não a sua inferioridade, mas de fato o seu grande relevo social. Em sua pesquisa, Carreira examinou as figuras femininas associadas à imagem de alguns Faraós em diversos Templos. Para ele, é intrigante o quanto a persona da rainha mãe é exaltada, não como uma condição de submissão, mas como guardiã e protetora da tradição e antigos costumes. Conforme abordado no início deste texto, o Faraó era cultuado e considerado filho dos deuses, sendo assim, aquela que o concedeu a vida, era amplamente respeitada e venerada.
A nobre função da rainha-mãe como guardiã da tradição e portadora de legitimidade volta a sobressair num dos reinados mais faustosos do Egipto – o de Ramsés II. O faraó celebra sua mãe Tuy, a «grande esposa real» de Seti I, em construções, relevos e estátuas. Os monumentos espalham-se por muitos lugares do país, de Abu Simbel, no extremo sul, à cidade de Ramsés, no Noroeste do Delta. Até uma estátua de rainha da XII dinastia, velha de 600 anos, foi aproveitada e remodelada para representar a querida mãe, «a princesa, grande em perfeição, grande em amabilidade, mãe do rei do Alto e Baixo Egito, esposa do deus e esposa real, Tuy. (CARREIRA, p. 10, 2001)
Assim, a mãe do Faraó detinha status de legitimadora do reino e não era meramente considerada a ‘protetora’ do rei, haja vista que sua influência ia além da função materna, exercendo poder político e econômico. Hinos de louvor eram criados e cantados em sua homenagem.
Louvai a senhora do país,
a dominadora das margens da Fenícia,
cujo nome é elevado sobre as terras montanhosas,
que decide sobre o povo…
Uniu os príncipes do Egito
E alicerçou a sua coesão;
Trouxe de volta os seus fugitivos
E reuniu os seus desertores.
Pacificou o Alto Egito
E expulsou os seus revoltosos,
Ela, a esposa real Ahhotep, viva! (CARREIRA, p.12, 2001
Um exemplo interessante da participação da mulher na política no Antigo Egito, refere-se a esposa principal do rei Amenófs IV (que pertencia a XVIII dinastia do Egito), Nefertiti, cuja influência foi significativa para vários setores, com destaque para a cultura, religião e política. Durante o período de seu reinado, foi considerada a patrona de templos, e de acordo com os textos encontrados, participava com frequência dos atos oficiais junto ao seu esposo. Nefertiti é considerada ainda na contemporaneidade, uma mulher de grande relevância para a sociedade egípcia. Vários monumentos foram erguidos em sua homenagem e alguns deles ainda estão preservados.
Em relação a mulher comum e sua relação com o poder, Carreira fez menção a dificuldade de registros históricos que possam fornecer indícios de como era o seu cotidiano. As profissões voltadas para a burocracia estatal eram comumente direcionadas aos homens, entretanto, foi possível identificar a existência de mulheres que atuaram como inspetoras, escribas e inclusive juízas. Este aspecto citado pelo pesquisador é fundamental, pois revela a existência de certa mobilidade social e de igual maneira, que as mulheres, assim como os homens, poderiam ter acesso à educação.
A mulher também foi retratada durante o Império Médio em atividades ligadas a tecelagem e, ao consultar documentos jurídicos, não é incomum encontrar mulheres que reivindicaram seus direitos através da justiça. Neste sentido, pensar na sociedade do Antigo Egito significa compreender a sua complexidade. Para isto, Carreira reforça o argumento que a imagem de que havia belas damas de vida ‘engessada’ pelas normas sociais, sendo servidas por escravos, era algo restrito a nobreza; deste modo, não devemos compreender a parte como um todo.
Em seu trabalho a historiadora Thamis Malena Marciano, afirma que de acordo com as normas sociais do Antigo Egito, cabia ao homem prover a mulher e sua família. Todavia, não é incomum encontrar registros de mulheres que, além de auxiliar seus esposos no campo, trabalhavam em pequenos restaurantes, em lojas e inclusive na supervisão e no comando de haréns. Muitas mulheres exerceram a função de musicistas, eram cantoras e dançarinas. Ainda, para a autora:
A posição sociocultural feminina destacava-se pela liberdade comparada a outras sociedades, pois as mulheres podiam possuir e administrar seus bens e, além disto, queixar-se sob maus tratos cometidos pelo marido, podendo ate solicitar o divorcio sem a permissão dos pais ou de seu companheiro. Segundo Margaret Bakos “as mulheres eram tratadas como os homens em todas as instancias da vida social. Elas andavam livremente pelas ruas, sem véus na cabeça ou no rosto, porem Havia, certamente, alguns setores nas casas, reservados ou considerados especiais para as mulheres. (MARCIANO, p.02, 2013)
O fragmento anterior aborda alguns direitos que a lei garantia a mulher, como por exemplo, a possibilidade de prestar queixa ao marido em caso de maus tratos. Aspecto que denota que o papel e lugar da mulher na sociedade do Antigo Egito, não era de inferioridade. Esta informação nos impele a refletir sobre como era feito o casamento. Considerava-se como idade apropriada para o casamento, o início da puberdade, entre os 12 a 14 anos. Quando pensamos em casamento, logo nos vem à mente cerimônias complexas, todavia, ao pesquisarmos, descobrimos que a constituição da união entre homem e mulher, não dependia da lei. Ou seja, dependia do desejo do casal envolvido. Entretanto, eram estabelecidos contratos em que eram especificados os direitos da mulher e a sua situação em caso de divórcio ou morte do cônjuge. Muito embora a sociedade egípcia seja envolta por forte religiosidade, não havia ritos especiais para este momento. Apenas era necessário o consentimento do pai da noiva, e após a decisão, a mulher deixava a casa dos pais e passava a viver junto do marido. Os pesquisadores não desconsideram que tenha ocorrido nas camadas mais nobres, algum tipo de cerimônia para marcar esta importante etapa da vida de um casal, mas, mesmo tendo acesso a poucos registros, estes permitem concluir que este momento da vida dos jovens egípcios não era feito com pompa.
Conclusão:
Neste texto, procuramos apresentar a mulher do Antigo Egito em sua perspectiva social, ou seja, seu lugar e função social. Vimos que, muito embora a mulher tenha sido comumente representada como a principal responsável pelos cuidados com a família e com o lar, isto não representou a sua inferioridade social. A mulher do Antigo Egito gozava de direitos jurídicos, acesso à educação, além de muitas terem tido acesso a cargos públicos de destaque ao atuarem como escribas e como funcionárias públicas. Desta forma, historiadores contemporâneos ressaltam que, apesar da existência de um sistema hierárquico, havia possibilidade de mobilidade social.
FONTES:
Artigo escrito pela moderadora Camila Figueiredo.
CARIA, Thamis Malena Marciano. Aspectos da condição feminina no Antigo Egito. Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 02, N° 01 – Junho – 2013
CURADO, Maria Clara. (org) A mulher na História. 2001, 282p.
PLATAS, Glória Maria. Trabalho e religião: o papel da mulher na sociedade faraônica. Revista Mandrágora, v.17. n. 17, 2011, p. 157-173
Muito rica a pesquisa e esclarecedora no ponto de vista histórico- científico.
Parabéns pelo Conteúdo histórico político protagonista. Este artigo vai ajudar muito no acúmulo do conhecimento do legado histórico cultural e político do Egito.