As tentativas do rei Henrique VIII de divorciar-se da esposa Catarina de Aragão, causaram grandes controvérsias não apenas em seu reino, mas em toda a Europa. Enquanto Henrique pressionava o Papa a fim de anular o casamento, o mesmo também estava sendo pressionado pelo Sacro Imperador Romano-Germânico, Carlos V, para que a união permanecesse válida.
Carlos V era sobrinho de Catarina e, portanto, possuía um interesse político e pessoal em salvar seu matrimônio.
O Papa procrastinou a decisão enquanto pôde, mas em dado momento, não teve escolha a não ser enviar um representante à Inglaterra para presidir a audiência do divórcio antes de tomar uma decisão sobre o caso. Em 29 de Setembro de 1528, o Cardeal e político italiano, Lorenzo Campeggio, desembarcou em Dover, na costa de Kent. Thomas More, o braço direito de Henrique VIII, havia escrito ao Papa Clemente VII no início de 1528, comunicando-lhe sobre o pedido do monarca em anular seu casamento com Catarina de Aragão. Campeggio foi enviado ao reino com a esperança de atrasar os desejos de Henrique durante o tempo que fosse possível.
Em 18 de Junho de 1529, o Tribunal ou Corte Legatina em Blackfriars, foi oficialmente aberto para iniciar a audiência sobre anulação proposta por Henrique VIII. A Corte deveria ter sido oficialmente aberta em 31 de Maio, mas devido aos preparativos que precisavam ser realizados para a montagem das câmaras de julgamento, a audição só pôde começar no dia 18 de Junho.
Esta sessão do tribunal estava destinada a ser uma audiência formal em qual as duas partes responderiam à sua convocação por procuração. No entanto, enquanto o Rei seguiu com o procedimento e enviou um documento, a Rainha Catarina compareceu em pessoa.
Sua presença pegou a todos de surpresa, o que provavelmente foi sua intenção e, de acordo com Campeggio, sua chegada foi “Inesperada e desconhecida até o último momento.”
Ela entrou na câmara, solenemente acompanhada de quatro Bispos, o resto do seu conselho, e “uma grande companhia” de damas e fidalgas que a apoiavam. Deste modo, “entristecida e com grande seriedade”, ela leu o discurso, que havia elaborado no dia 16 de junho contra a competência do Cardeal, ordenando então que ele fosse registrado e depois, retornando por fim, ao seu lugar. Os juízes concordaram e disseram à ela que iriam responder seu apelo no dia 21 de junho e deste modo, ela e sua comitiva deixaram as câmaras do tribunal.
Em 21 de junho 1529, uma Corte Legatina Papal foi realizada em Blackfriars – mosteiro dominicano utilizado para ocasiões de estado -, onde o Cardeal Campeggio e o Cardeal Wolsey começaram a ouvir as evidências sobre o pedido de anulação do rei. Henrique protestou alegando que ao casar-se com a viúva de seu irmão, ele havia pecado aos olhos de Deus e que por tal razão, seu casamento não foi abençoado com um herdeiro varão, e sobre ter mantido seu silêncio por amor à ela, mas que não mais poderia fazê-lo, pois tal questão pesava em sua consciência.
Então foi a vez de Catarina. Uma excelente atriz e articuladora política, tal como seus pais outrora, ela superou a aparição e discurso de Henrique. De acordo com contemporâneos, após ela rejeitar a legalidade da Corte Legatina, ela levantou-se e cruzou a sala, então caindo de joelhos e declarando diante de Henrique e todas as testemunhas presentes:
“Senhor, peço-vos por todo o amor que tem havido entre nós, e pelo amor de Deus, deixe-me ter direito e justiça, tenha um pouco de piedade e compaixão por mim, pois sou uma pobre mulher e estrangeira, nascida fora de seus domínios, não possuo aqui nenhum amigo assegurado e um conselho deveras indiferente: eu apelo a ti, como a cabeça da justiça neste reino. Ai de mim! Senhor, em que lhe ofendi ou, em que ocasião proporcionei-lhe desagrado? Eu agi contra sua vontade e prazer, de modo que você pretenda – como eu percebo – afastar-me de ti?
Eu tomo a Deus e a todo o mundo como testemunha de que tenho sido para ti, uma verdadeira e obediente esposa, sempre confortável para com sua vontade e prazer, que nunca disse ou fez qualquer coisa contrária a isto, estando sempre bem satisfeita e lidando com todas as coisas em que tiveste algum deleite ou galanteio, mesmo que muito ou pouco, em minhas palavras ou em meu semblante, nunca demonstrei desgosto, ou um vislumbre ou faísca de descontentamento; Amei a todos a quem amou, somente para seu bem, tendo motivos ou não, sendo meus amigos ou inimigos.
Nestes vinte anos eu tenho sido sua verdadeira esposa e mais, e por mim tivestes diversas crianças, embora fosse da vontade de Deus, chamá-las para fora deste mundo, fato no qual eu nenhuma culpa possuo.
Quando tomou-me pela primeira vez, clamo a Deus para ser meu juiz, eu era uma verdadeira donzela, sem o toque de um homem; e se é verdade ou não, coloco isto em sua consciência, se houver qualquer justa causa pela lei, que possa alegar contra mim, seja de desonestidade ou qualquer outro impedimento, que então afaste-me e mande-me para longe de ti, e eu irei alegremente retirar-me para minha grande vergonha e desonra; mas se não houver nenhuma, então aqui eu humildemente peço-vos que me deixe permanecer sob meu antigo estado, recebendo isto apenas em suas mãos. Portanto, eu humildemente lhe rogo, em nome da caridade e pelo amor de Deus – o mais justo dos juízes – para poupar-me deste novo tribunal, até que eu possa ser aconselhada por meus amigos na Espanha, sobre como prosseguir. E se não puderes estender para mim, tão imparcial favor, que seja feita a sua vontade, e a Deus, eu entrego a minha causa.”
Ela estava desafiando Henrique e dizendo-lhe que tudo o que fosse acontecer a partir deste ponto, certo ou errado, seria sua própria atitude, podendo portanto pesar em sua consciência. Em um período onde esperava-se que as mulheres fossem submissas ou passivas, o desempenho de Catarina, forneceu aos espectadores exatamente isto; ao ajoelhar-se na frente do monarca, apelando à sua consciência e dizendo-lhe tudo que havia feito por ele, ela colocou-se como a esposa ferida e, Henrique, como o agressor. Nós todos sabemos que Catarina não era fraca ou submissa, mas ela sabia como utilizar tais estereótipos em sua vantagem.
Depois, ela foi mais longe e acrescentou como ele estaria insultando a memória de seus respectivos pais – Henrique e Fernando -, caso seguisse em frente com isto, pois estes, haviam considerado a união entre ambos ”válida e legal”. Logo depois, Catarina pediu permissão a Henrique, para escrever ao Papa, a fim de defender sua honra; o monarca não teve outra escolha, a não ser aceitar.
Ela finalizou seu discurso de joelhos, embora o monarca a tenha tentado levantar duas vezes. Ao findar seu longo apelo, Catarina, ao invés de retornar ao seu assento, levantou-se com sua assistente, fez uma reverência para o marido e saiu andando para fora da sala do tribunal, sem olhar para trás.
Houve muitas tentativas para trazê-la de volta, mas aparentemente, os pedidos foram ignorados, até que ela respondeu declarando que: “Minha presença aqui não é importante, pois este tribunal não é imparcial para mim, então não permanecerei. Continuem.”
Catarina não retornaria ao Tribunal Legatino, quase como se soubesse que sua causa ficaria sem uma resposta. No entanto, ela contava com um enorme apoio popular e foi altamente aclamada pela população enquanto retirava-se do local.
Após alguns adiamentos, a Corte Legatina seria suspensa definitivamente quando Catarina teve seu apelo aceito pelo Papa Clemente VII – não sem pressões externas do Sacro Imperador Romano, sobrinho da mesma. O casamento de Catarina com Henrique VIII, foi anulado apenas quatro anos depois, em Maio de 1533, após a decisão do arcebispo Thomas Cranmer, juntamente de sua Corte, em declarar que a união nunca fora válida.
O apelo de Catarina de Aragão na Corte Legatina, seria tempos depois, imortalizado na peça histórica ”Henrique VIII” (intitulada após o First Folio de 1623), escrita por William Shakespeare, em parceria com o dramaturgo John Fletcher.
FONTES:
Six Wives: AQUI.
Tudors and other histories: AQUI.
The Tudor Chronicles: AQUI.
Imagens: Filme ”A Outra” – The Other Boleyn Girl, 2008.
ótimo artigo como sempre!!!! muito relevante as explicação com relação ao discurso de Catarina.Tenho algumas dúvidas com relação a essa questão do divorcio do Rei Henrique VIII. A Rainha Catarina me pareceu muito desamparada pelo o povo espanhol e muito sozinha nessa questão, haveria algum impedimento para ela retornar a Espanha? Por que mesmo após o divórcio teve que se manter em solo inglês até sua morte?
Olá Fabiane. Fico feliz que tenha gostado do artigo.
Catarina passou o fim de seus dias acreditando e intitulando-se ser a verdadeira rainha inglesa. Ela procurou e possuía apoio na Espanha (assim como no resto do continente) e dentro da igreja romana; Henrique inclusive exclamaria após saber de sua morte em 1536: “Deus seja louvado, estamos livres de qualquer suspeita de guerra!” – pois temia sofrer algum atentado devido seu divórcio.
Retornar à Espanha na situação de Catarina – uma vez que ela sofreu exílio da Corte em solo inglês – seria assinar embaixo da decisão de Henrique de que ela de fato, não mais era sua esposa por direito. Sem falar que após o divórcio, ela foi declarada Princesa viúva de Gales, título de seu casamento anterior com Arthur, irmão de Henrique. Deste modo, seu lugar ainda era na Inglaterra e por lá ela poderia viver os restos de seus dias, desde que fosse onde o rei determinasse. 🙂
Obrigada!