
Casting, palavra da língua inglesa já incorporada ao vocabulário no Brasil, significa escolha de elenco. É o ato de escolher as pessoas que darão vida às personagens que saem da mente dos criadores. Tal como acontece hoje, no passado essa também era uma difícil tarefa.
É bastante conhecido o fato de que, no teatro inglês da Renascença, as mulheres não podiam atuar nos palcos públicos. Isso não significava que elas estivessem alijadas da atividade: havia mulheres nos bastidores, especialmente cuidando das vestimentas e, mais importante: muitas mulheres na plateia, como parte do público pagante. Vale lembrar também que tal proibição só valia para o teatro profissional: nas chamadas masques, atividades teatrais de entretenimento realizadas pela nobreza, as mulheres sempre tomaram parte.Consta que a primeira aparição de Ana Bolena, mãe da futura rainha Elizabeth I, na corte inglesa, teria acontecido em 1º de março de 1522, durante uma performance de masque.

Os papéis femininos no auge do teatro renascentista inglês eram feitos por jovens adolescentes, entre 13 e 19 anos, cujas vozes ainda eram agudas o suficiente para se passarem por mulheres. O que não impedia que papéis de mulheres mais velhas ficassem a cargo de atores adultos. Assim, explica-se, por exemplo, a menção às barbas das bruxas em Macbeth. Consta que o próprio Shakespeare, ator que era, tenha representado Margaret d’Anjou em performances das peças Henry VI.
Os motivos da interdição do palco às mulheres nessa época são variados. Embora protegido por alguns elementos da nobreza, o teatro era considerado uma atividade marginal, que feria os bons costumes de diversas formas, sempre criticado pelos puritanos e por parte da sociedade londrina mais conservadora. Não por acaso, os primeiros edifícios teatrais dividiam a periferia de Londres com prostíbulos, asilos, tavernas e hospitais. Eram as chamadas Liberties, os “subúrbios do pecado”. O que não inibia um imenso público de comparecer às performances, fazendo do teatro um grande sucesso popular.
As origens do teatro estavam nas guildas de artesãos, entidades com prevalência do masculino. Os jovens atores eram, portanto, aprendizes. Da mesma forma, as primeiras companhias teatrais eram itinerantes – não parecia apropriado que mulheres viajassem na companhia de homens que não fossem seus guardiões legais – pais, maridos ou irmãos. Tais fatores fizeram com que a profissão de atriz não existisse nessa época na Inglaterra.
É, preciso, portanto entender que, desde sua origem, o teatro shakespeariano estabeleceu com o público uma relação de cumplicidade, de suspensão da descrença – era e é preciso embarcar na fantasia e na poesia para enxergar no palco não a pessoa do ator, com suas identificações de gênero, etnia ou idade, mas sim a personagem em performance. Como diz Marlene dos Santos “na arte do faz-de-conta, não há instrumento mais potente do que as palavras de um grande poeta ditas com toda a competência por um ator talentoso”.

A guerra civil inglesa culminou com o governo puritano de Oliver Cromwell. Em 1642, os teatros foram fechados e assim permaneceram até 1660, com a Restauração da monarquia e ascensão ao trono do rei Charles II. Durante o regime de Cromwell, houve perseguição aos atores e teatros foram demolidos. Porém, Charles II era um entusiasta do teatro, tal como seus antepassados James I e Elizabeth I, e, dessa forma, tão logo assumiu o trono, deu permissão para que o teatro revivesse. Da mesma forma, também permitiu que, pela primeira vez na história inglesa, mulheres pudessem atuar nos palcos públicos. A primeira delas deve ter sido Margaret Hughes, que fez Desdêmona em uma produção de Otelo, do realizador Thomas Killigrew. A aparição das mulheres causou um verdadeiro furor na época. Em um primeiro momento, a presença feminina serviu como pretexto para a exploração de aspectos mais sensuais nas peças, inclusive nos revivals das peças de Shakespeare, que ressurgiram “restauradas e melhoradas”, ou seja, adaptadas ao gosto neoclássico da época. Tornou-se recorrente a criação de papéis em que mulheres pudessem se disfarçar de homens – o uso de roupas masculinas, as chamadas breeches, destacava o corpo feminino e mexia com a imaginação da plateia masculina. Setores conservadores da sociedade aproveitaram para, mais uma vez, condenarem o que consideravam a licenciosidade do teatro. O que não impediu que mulheres talentosas conquistassem destaque nos palcos, como a famosaNell Gwyn, que viria inclusive a ser amante do rei Charles II.

Aos poucos, porém, a resistência foi cedendo e as performances femininas foram se tornando comuns e ganhando respeito. Tanto que, mais tarde, já no século XX, em 1900, o primeiro Hamlet da história do cinema foi interpretado por uma mulher, a famosa Sarah Bernhardt, em um curta de apenas 2 minutos, que registrava o duelo entre Hamlet e Laertes. Já em 1920, a dinamarquesa Asta Nielsen protagoniza o primeiro Hamlet em longa-metragem. As mulheres, definitivamente, tinham conquistado seu lugar como performers de Shakespeare, fossem em papéis femininos ou mesmo masculinos.
O fator étnico era, portanto, a última barreira a ser vencida no sentido de tornar o casting shakespeariano verdadeiramente universal, como já são suas peças. O primeiro ator negro a interpretar um papel shakespeariano em um palco londrino foi Ira Aldridge em 1826, em Otelo. Ele também interpretaria outros protagonistas shakespearianos, como Ricardo III, Rei Lear e Tito Andrônico. Porém, somente a partir da metade do século XX em diante, a questão de haver diversidade étnica entre os atores que interpretam papéis shakespearianos entrou realmente em pauta. Joe Papp, diretor norte-americano, declarou em 1948 que “na melhor tradição do teatro e da democracia, não deve haver discriminação entre seres humanos”.

O critério de casting, portanto deve ser o talento, sendo a cor da pele irrelevante. Hoje em dia, tanto a Royal Shakespeare Company quanto o Globe Theatre adotam o conceito de colorblind casting em suas produções. O mesmo se dá em algumas produções shakespearianas na Broadway. Podemos citar alguns exemplos, como a atriz Gugu Mabatha-Raw que fez Ofélia em Hamlet, com Jude Law no papel título, no ano de 2009.
David Oyelowo, que em 2001 interpretou Henry VI, na Royal Shakespeare Company, tornando-se o primeiro ator negro a interpretar um soberano inglês no palco. Também na RSC, em 2012, Ray Fearon interpretou Marco Antônio em uma consagrada montagem de Júlio Cesar.

Indo mais além, a crítica mais recente rejeita inclusive a nomenclatura colorblind, preferindo o uso da expressão nontraditional casting, ou seja, o casting deve ser livre para escolher o ator pelo seu talento e afinidade dramática com o papel, pouco importando sua aparência física. Afinal já dizia o próprio Shakespeare que “o mundo todo é um palco, e os todos os homens e as mulheres são atores”. Sigamos então, as palavras do Bardo e celebremos todos aqueles que tão generosamente se dispõem a dar vida às personagens por ele criadas.
Fontes:
Bardstage: AQUI.
Shakespeare in American Communities: AQUI.
Theater Data Base: AQUI.
Biblioteke Virtual: AQUI.
Shakespeare Online: AQUI.
BBC: AQUI.
The Shakespeare Blog: AQUI
SANTOS, Marlene Soaresdos. “O teatro elisabetano”. IN NUÑEZ, Carlinda. O teatro através da história. Rio de Janeiro: CCBB/Entourage, 1994, p.69-97.