Este artigo é muito especial para nós. Nele não iremos tratar de uma história de princesa ou rainha que teve uma vida digna de contos de fadas. Esta é uma história de uma mulher que vivenciou preconceitos raciais cotidianamente, muito embora estivesse integrada a uma família de posses e vinculada à aristocracia inglesa. A vida de Dido Elizabeth Belle é interessante nesse sentido, pois contempla a percepção de alguém que não fazia parte do “padrão” estabelecido pela sociedade inglesa do século XVIII, ou seja, branca, livre e aristocrata. Dido fez parte de uma família aristocrática, no entanto, sua origem não era branca, tampouco livre.
Para traçar a trajetória sobre a origem desta mulher tivemos certa dificuldade, haja vista que, não são inúmeras as produções que tratam a seu respeito. Mesmo as fontes existentes sobre ela são escassas e, em sua maioria trata-se de obras estrangeiras. No entanto, esmiuçamos vários artigos para que pudéssemos elucidar um pouco sobre a história de alguém que viveu em meio à forte preconceito racial e, ainda hoje desperta curiosidade em todo o mundo.
Início da Vida:
Dido nasceu em 1761 em uma região conhecida como Índias Ocidentais Britânicas – neste

período a Inglaterra realizava sua expansão ultramarina e era intenso o comércio escravocrata – ela era filha de Maria Belle, uma mulher africana escravizada que teve um relacionamento com o nobre John Lindsay, então, capitão da marinha real inglesa. Nos registros que tratam da origem de Dido, não há muitos dados sobre quem foi a sua mãe, apenas que, além de ser escrava, ela criou a filha por cinco ou seis anos aproximadamente.
A escolha do seu nome carrega consigo o desejo por um futuro distinto da sua mãe. O nome “Dido” faz menção a um título de uma peça teatral em voga nos teatros ingleses no século XVIII. Foi uma sugestão do seu tio avô, William Murray. Para ele seria interessante colocar este nome a fim de remeter uma alcunha de destaque e, dessa forma, induzir as pessoas a enxergarem a menina como algo precioso e tratá-la com o devido respeito que merecia. A figura de William Murray é central na vida de Dido Elizabeth. Isto porque, a criança nasceu fora do casamento, sendo, pois ilegítima, o que comprometia o status social do pai, John Lindsay, que, conforme mencionado, era proveniente de uma família aristocrata e ocupava a importante posição de capitão da marinha inglesa.

A alternativa encontrada pelo seu pai para garantir a Dido um futuro distante das agruras da escravidão e, ao mesmo tempo, conceder a ela um destino digno, consistiu em enviar a menina para viver na casa de William Murray. Murray era o primeiro Conde de Mansfield, atuava como Chefe de Justiça, e era tio de Jonh Lindsay. O Conde de Mansfield era um homem respeitado em Georgia e detinha grandes posses. Ele aceitou cuidar da menina e integrá-la como parte da família, o que foi feito no ano de 1765. A partir de então, a menina passou a viver com o seu tio avô em Hampstead, na residência conhecida como mansão dos Kenwood. Dido foi batizada pela família no ano de 1766, na Igreja de Santo George em Blombsbury.
Murray e sua esposa, Elizabeth Murray, não tinham filhos. Além de Dido já criavam nesse período uma menina chamada Elizabeth Mary, sobrinha neta do casal que havia perdido a mãe. Dessa forma, a inserção de Dido na família teria ainda como objetivo conceder a Elizabeth uma companhia ou, ainda, talvez mais tarde, Dido poderia se tornar assistente pessoal da menina. Elizabeth tinha aproximadamente a mesma idade de Dido, dessa forma, a convivência delas fez florescer amizade e carinho entre as ‘irmãs’.

Sobre a relação de Dido com o pai, não há muitas informações. No entanto, pesquisadores contemporâneos, ao examinarem o obituário de John Lindsay encontraram indícios que comprovam que entregar a filha para a família Murray foi uma alternativa encontrada por ele para fugir dos julgamentos sociais. Além de ter tido uma filha fora do casamento, sendo, pois ilegítima, a criança era negra, filha de Maria Belle, uma mulher escravizada. As informações indicam que Lindsay não estava disposto a conviver com a pressão da sociedade aristocrata inglesa. Ele não assumiu a criação da filha perante a sociedade temendo os julgamentos e preconceitos, assim delegou ao seu tio tal papel. Em um dos trechos do obituário foi feita uma referência a Dido como uma ‘mulata’, filha natural, porém ilegítima de Sir John Lindsay:
“(…) ele faleceu, acreditamos, sem qualquer filho legítimo, porém deixou uma filha natural, uma mulata que tem sido criada na família de Lorde Mansfield quase desde a sua infância…”.

Este fragmento é importante para nós, pois demonstra o tipo de sociedade em que Dido estava inserida e as dificuldades pelas quais ela certamente vivenciaria em sua vida. Ou seja, um dos pilares econômicos da economia inglesa no século XVIII era o comércio de escravos. Uma pessoa negra era considerada como inferior em uma sociedade branca, isto é, ocuparia uma posição subalterna em uma sociedade predominantemente branca e patriarcal. Assim, a presença de uma filha ilegítima e negra resultaria em experimentar julgamento da sociedade e uma rotina de preconceito racial. A cor de sua pele era algo que Dido não poderia fugir, era algo que fazia parte da sua história, de suas origens. Lindsay optou por seguir sua vida sem a presença cotidiana da sua filha.
Todavia, Dido Elizabeth cresceu na residência dos Murray e teve acesso a educação nos mesmos moldes que a sua prima Elizabeth. De acordo com os relatos do período, o Conde fazia questão de oferecer as meninas o mesmo padrão de conforto e o mesmo tipo de educação. Os relatos extraídos dos diários dos membros da família, informam que os artigos de luxo que eram comprados para Isabel eram adquiridos também para Dido. Em relação ao conforto e acesso aos bens materiais não havia diferenciação entre as meninas. Tal aspecto revela que a família constituiu carinho por elas. Todavia, é preciso ir além desses relatos e examinar como se dava tal relação no universo cotidiano.

Apesar de ter acesso ao conforto e educação nos mesmos moldes que a sua prima Isabel, na prática, Dido teve que enfrentar o peso das convenções sociais. Na Inglaterra do século XVIII, além de deter os costumes aristocráticos, como a presença das rígidas normas sociais e o controle patriarcal, vivenciava ainda as concepções provenientes de uma sociedade escravocrata. Imperava neste período o modelo econômico embasado na expansão comercial tendo como pilares o comércio proveniente da escravidão. Ou seja, o modelo de sociedade considerado como ideal estava sedimentado na família branca e no rígido cumprimento das normas sociais. Dido teve acesso ao conforto, a vestidos e roupas caras que ditavam a moda inglesa e pôde usufruir de uma educação de qualidade. No entanto, os elementos culturais predominantes no cotidiano da sociedade vigente ainda se faziam vivos em sua relação familiar.
De acordo com os registros, o Conde Murray era contrário ao sistema escravocrata, e, inclusive lia obras escritas por intelectuais abolicionistas. Todavia, em virtude das convenções sociais, o tratamento que Dido recebia nas ocasiões públicas era, por inúmeras vezes, discriminatório. Durante a realização dos jantares formais, por exemplo, nas ocasiões em que a família recebia convidados ilustres, Dido não se sentava à mesa com os demais. Ela não podia, era negra e filha de um relacionamento ilegítimo. Em termos práticos e culturais, a família Murray apesar de expressar carinho por ela, não foi capaz de enfrentar este tipo de convenções sociais. A ela apenas era permitido se juntar às senhoras após o término dos jantares para tomar o café na sala de estar. Dessa forma, a posição social ocupada por Dido não era algo homogêneo, digno de um conto de fadas em que uma menina de origem humilde tinha conseguido ter acesso a uma vida próspera. Muito embora, os registros nos dão mostras de que ela foi tratada com carinho pelos tios, paradoxalmente, nos revelam que o peso cultural concedeu a ela uma posição subalterna no seio familiar. Fazia parte da família, era tratada com afeto, mas o peso da sua história estava presente, ou seja, Dido era fruto de um relacionamento ilegítimo e negra.

Na medida em que a menina crescia, suas responsabilidades na residência Kenwood ganhavam maior destaque. Dido tornou-se responsável pela administração dos estaleiros lácteos e pelas avícolas da família, além de cuidar da correspondência. Estas funções eram consideradas importantes para famílias de nobres, pois relevam a concessão de responsabilidades sobre assuntos econômicos substanciais para família. Para conduzir os trabalhos na propriedade ela também recebia um subsídio anual que, de acordo com os pesquisadores, variava em torno de 10 a 30 vezes mais do que um salário concedido a um empregado doméstico no período. A sua prima, Isabel, recebia uma quantia ainda maior, todavia, este aspecto não é difícil de elucidar. Aos proventos de Isabel somava-se o valor relativo aos rendimentos da herança, haja vista o falecimento dos seus pais ainda na infância.
Continua…