O título deste artigo parece, a priori, contraditório, mas não é. No decurso deste texto veremos que, em meio a um universo em que a influência da Igreja Católica ainda se fazia fortemente presente, paulatinamente, muitas mulheres lutaram pelo seu empoderamento e puderam ampliar suas possibilidades de vida, mesmo que de maneira limitada. Dessa forma, neste artigo, temos como objetivo analisar o lugar e papel da mulher no contexto histórico conhecimento do Renascimento.
Antes de conhecermos um pouco sobre o papel da mulher no Renascimento, consideramos relevante compreender o conceito que determina o período que será examinado por nós. Didaticamente, compreendemos por Renascimento o período correspondente ao século XIII, final da Idade Média, ao século XVII, início da Idade Moderna, nos quais significativas alterações sociais, culturais, políticas e econômicas despontaram em toda a Europa.
O contexto histórico:
O termo Renascimento remonta à valorização das obras e elementos culturais provenientes da Antiguidade Clássica, isto é, neste momento, os europeus vivenciaram a estima e ‘resgate’ dos elementos próprios da cultura greco-romana. Esta valorização se deu, sobretudo, na Itália, comumente referenciada como o “Berço do Renascimento”. Em termos espaciais, foram nas regiões italianas onde se edificaram os principais centros culturais, tais como em Florença e Viena. Posteriormente, outros países foram influenciados, dentre eles, a Inglaterra, a Alemanha, Portugal e Espanha.
No entanto, foram principalmente os filósofos Humanistas renascentistas, a partir do século XV que contribuíram para a difusão do termo “renascimento”. O Humanismo foi um movimento intelectual que despontou na Itália, cujas concepções rompiam com os ideais apregoados pela Igreja Católica, sobretudo, com o teocentrismo. Para a Igreja, a fé deveria ser o centro de todas as coisas. Todavia, para os humanistas, era necessário constituir uma sociedade em que o homem deveria ser valorizado: o antropocentrismo. A valorização do homem como o centro de todas as coisas estimulou o surgimento de pesquisas científicas e filosóficas que pudessem compreender o indivíduo no mundo. Despertou-se também o interesse pelo conhecimento científico livre das amarras do misticismo e da religiosidade, bem como a busca pelo saber racional. Este panorama influenciou as artes e a literatura. Tivemos o aparecimento de filósofos, artistas e pesquisadores importantes, tais como Leonardo Da Vinci, Sandro Boticelli, Erasmo de Roterdan, Thomas Morus, Andrea Alciati, Auguste Comte, dentre outros. A respeito do conceito “renascimento” a historiadora portuguesa Suzana Paula de Oliveira Magalhães afirma que:
“O ‘renascer’, do qual deriva o termo Renascimento, consistiu na redescoberta dos textos de autores clássicos, como Cícero, Horácio e Séneca, entre muitos outros, e no crescente interesse dos académicos europeus pela recuperação das fontes dos textos em Latim e Grego dos períodos anteriores à hegemonia do Cristianismo na cultura européia. Este turbilhão cultural conduziu ao Humanismo em detrimento da Escolástica medieval e, consequentemente, à celebração do ser humano”. (MAGALHÃES, 2009, p.10)
Não é incomum alguns livros didáticos apresentarem o Renascimento como um processo que teve seu início a partir do século XII, em razão do crescimento comercial e urbano. Este crescimento, resultante da ampliação das rotas comerciais europeias, e surgimento dos burgos (cidades), resultou no desenvolvimento financeiro da sociedade. Muitas famílias passaram a investir em obras de arte e, inclusive passaram a financiar inúmeros artistas. A corte Italiana, em especial, podemos citar Lourenço de Médici, investiu e financiou inúmeros artistas e intelectuais em Florença. Este foi um momento de profusão e estímulo à cultura.
Muito embora esse tenha sido um processo histórico de inúmeras transformações, não podemos deixar de examinar que o termo ‘renascimento’, carrega consigo uma carga de preconceito em relação ao período Medieval. Como analisamos no artigo sobre “As mulheres na Idade Média”, a alcunha renascimento faz alusão à Idade Média, período em que os filósofos Humanistas posteriormente conceituaram como “Idade das Trevas”. Isso, devido à forte influência da Igreja Católica que se considerava como a única instituição capaz de orientar os costumes e tradições. De igual maneira, o clero se considerava como o único detentor do conhecimento. Assim, a este período os humanistas consideraram como um tempo obscuro para a sociedade. Além disso, o acesso à educação ainda era restrito as classes mais abastadas e, em maior medida, aos membros do clero. As alcunhas pejorativas (trevas, escuridão) vêm sendo refutadas pelos historiadores contemporâneos.
A história é um processo, e, é dessa forma que precisa ser compreendida. Significativas transformações já vinham sendo realizadas antes do século XIII. Nesse sentido, não houve uma ruptura brusca, mas sim um longo processo que permeou vários séculos em que diversas mudanças em vários campos do conhecimento e da sociedade foram concretizadas. Dessa forma, para além do preconceito de quando o termo foi criado, a palavra “Renascimento” possui, para os historiadores contemporâneos, uma função didática, isto é, para nomear e facilitar o estudo de um dado período histórico. Além disso, não é demais reforçar que o conceito “Renascimento” surge com a finalidade de enaltecer uma ‘nova’ sociedade que estava sendo gestada. Esta sociedade defendia uma menor interferência da Igreja na condução da vida e, por conseguinte, valorizava a racionalidade e o papel do homem.
E é nessa profusão de mudanças que elegemos como objeto de análise a mulher renascentista. No decurso da Idade Média, a vida da mulher, salvo exceções, ainda era comprometida pela rigidez religiosa e pelas normas sociais. Nesse sentido, trazemos a seguinte questão: Este contexto de inúmeras transformações teve impacto na vida das mulheres?
A Mulher no Renascimento:
Para responder a este questionamento iremos nos concentrar, em maior medida, no exame da mulher no renascimento inglês. De acordo com Oliveira, apesar de historicamente o principal papel da mulher ter sido relegado quase que exclusivamente à função materna, isso pouco mudará no Renascimento. Todavia, em diversas situações a mulher ocupou papéis de relevância na política e na condução da vida em sociedade.
Desde a tenra infância, farta parcela das mulheres européias eram criadas sob forte rigidez religiosa. A educação era voltada às atividades do lar e a possibilidade de liberdade praticamente nula. Desde criança, as meninas eram ensinadas a cuidar do lar, em especial, a realizarem atividades como cozinhar, costurar e bordar. A condição feminina era voltada às funções do matrimônio e, por conseguinte, para a vida materna. No entanto, com o crescimento das comunidades urbanas, paulatinamente as mulheres atuaram em atividades comerciais, em profissões como padeiras, atendentes, artesãs e comerciantes de pequenos produtos. No campo, não era incomum a mulher auxiliar nas obrigações junto ao marido.
Na Idade Média era vedado o acesso à educação às mulheres. A possibilidade de uma mulher frequentar universidades era ainda mais raro. Dada a rigidez das normas sociais, aquelas que tinham acesso à educação, não ultrapassam a fase da alfabetização, isto é, apenas dominavam a escrita e leitura. As possibilidades de acesso aos livros também eram restritas. A maioria dos livros permitidos as mulheres eram religiosos, como, por exemplo, Bíblias e livros de orações. No mais, alguns pais permitiam que suas filhas lessem outras obras, como, romances, livros de contos e poesias.
Foi no Renascimento e, sobretudo, nas cortes onde residiam as famílias mais abastadas, que tiveram início as transformações significativas na realidade da mulher. Na Inglaterra no período Tudor, podemos fazer menção as respeitáveis ações implementadas pela Rainha Catarina de Aragão, primeira esposa de Henrique VIII. Ela incentivou as mulheres da corte a receberem educação acadêmica e elas receberam. Filha de Isabel de Castela e Fernando de Aragão, Catarina reproduziu suas experiências pessoais na corte inglesa. Isso porque, em sua infância e juventude, sua mãe, Isabel, investiu fortemente em sua educação. Dessa forma, a rainha também cuidou da educação de sua filha, Mary Tudor.

Na corte Tudor foi comum a presença de tutores, responsáveis por orientar a educação de moças e rapazes. Thomas More, chanceler de Henrique VIII, também investiu na educação de suas filhas. Sua filha Margaret Roper, foi a primeira mulher fora da realeza a publicar um livro que havia traduzido para o inglês (no caso, Precatio Dominica de Erasmo de Rotterdam). Devido tal atitude, More foi considerado um precursor e, em vista disso, influenciou outros nobres a realizarem tal ação. Outras mulheres se destacaram no período, como a sexta esposa do Henrique VIII, Catarina Parr. Parr se dedicou a tradução de obras e foi a primeira mulher a publicar um livro na Inglaterra Tudor, ela publicou um livro de orações. Oliveira ressalta que a corte espanhola de Isabel I também foi um importante exemplo de ambiente em que as mulheres passaram a ter acesso à educação nos mesmos moldes que os homens.
“(…) em situações excepcionais, como no caso de Isabel I, eram as mulheres educadas de acordo com o mesmo curriculum leccionado aos homens. Com frequência, a educação da mulher estava a cargo de tutores, que eram, por norma, homens de fé, sendo estes responsáveis pela sólida formação religiosa das suas educandas, segundo os dogmas eclesiásticos”. (MAGALHÃES, 2009, p. 11)
Quando expomos no título deste artigo, a rivalidade entre tradição e empoderamento, tratamos da dificuldade para que as mulheres alcançassem uma vida com maiores oportunidades e possibilidades. Apesar dos relevantes exemplos de mulheres que citamos, a vida da mulher comum, das camponesas e pobres moradoras de vilas, ainda era com poucas possibilidades além do casamento. A educação era restrita às camadas abastadas, como nobres e aristocratas. Por isso, precisamos entender que a ampliação do acesso das mulheres a ambientes e profissões que eram comumente destinado aos homens se deu de modo processual. Nesse sentido, não podemos menosprezar os movimentos de ruptura no modo de pensar e viver, apenas por que foram feitos inicialmente pela nobreza, como em relação às ações de Catarina de Aragão e Isabel de Castela. Foram esses movimentos de mudança que estimularam a expansão das mulheres a outras funções e oportunidades.
Continua…
Referências:
CLOUD, Amanda. Gender Roles of Women in the Renaissance. Disponível em: < http://www2.cedarcrest.edu/academic/eng/lfletcher/shrew/acloud.htm > acesso em fevereiro de 2016.
MAGALHÃES, Suzana Paula de Oliveira. A condição feminina no Renascimento. Dissertação de Mestrado. 2009, 176p.
Mulheres na Inglaterra. Disponível em < http://www.historylearningsite.co.uk/tudor-england/women-in-tudor-england/ > acesso em fevereiro de 2016.