Para aqueles que tem apreço e interesse em relação ao conhecimento histórico é comum se deparar com palavras ou expressões que, em maior medida fazem parte do vocabulário de pesquisadores da área de humanas em geral. Dentre as palavras, podemos fazer menção a empirismo, conhecimento científico, senso crítico, senso comum… Enfim, são palavras que leitores apaixonados por história, mas são leigos – não graduados na área – tem contato com certa regularidade, todavia, em muitos casos não possuem domínio do seu significado e aplicabilidade. Não compreender o que representa essas palavras na produção e estudo do conhecimento histórico pode, muitas vezes, resultar em confusões e erros de interpretação. Foi pensando nestes leitores que o Tudor Brasil e a Reviver a História considerou fundamental trazer a tona uma discussão que muitas vezes passa despercebida, mas que é essencial para que o estudo sobre objetos, personalidades e contextos históricos não se torne algo inconsistente.
Daremos início a exposição de uma expressão que é geralmente utilizada para contrapor argumentos que não são aceitos do ponto de vista científico e histórico: o senso comum. Quando consultamos qualquer dicionário da língua portuguesa, as explicações mais recorrentes relacionadas ao senso comum referem-se ao tipo de informação ou experiências que são adquiridas a partir da relação do homem com o meio em que vive. Trata-se da aprendizagem/conhecimento que acumulamos ao longo da nossa vida, bem como as informações e experiências que são transmitidas a nós através do convívio social. Dessa forma, o senso comum se relaciona com o empirismo, isto é, com o conhecimento que acumulamos a partir da nossa observação e experiências.
Este tipo de conhecimento não tem compromisso com uma validação científica primorosa, pelo contrário, por ser resultado das nossas experiências espontâneas e cotidianas, mas não há ligação com metodologia ou teoria. No entanto, é preciso frisar que apesar do senso comum ser distinto do conhecimento científico isso não significa que ele seja inválido ou inútil. O senso comum está imbricado em nossas relações pessoais, com a família, com a nossa cultura e com os condicionantes sócio culturais. É através dos ensinamentos que uma criança aprende aspectos relacionados aos valores culturais e educacionais, por exemplo. É a partir do diálogo entre pais e filhos que um jovem adquire dados importantes sobre como foi a vida no passado, como deverá proceder em determinadas situações do dia a dia. Dessa forma, é preciso ter em mente que o conhecimento proveniente do senso comum também possui uma função significativa na formação das pessoas. O que aprendemos no dia a dia faz parte inclusive dos instintos de sobrevivência do homem em seu meio. Mesmo as pessoas que possuem baixo grau de instrução tem o domínio de informações que permite educar uma criança, passar valores e orientações. Podemos citar vários exemplos para demonstrar como o conhecimento proveniente do senso comum é perceptível em nosso cotidiano. Uma pessoa que mora no campo, por exemplo, um agricultor, mesmo sem ter uma formação de nível superior, consegue identificar qual época é mais propícia ao cultivo de determinados alimentos, ele sabe a influencia das estações do ano no regime de chuva. E, a partir da observação do comportamento dos animais e plantas ele consegue traçar planos sobre quais ações ele deve optar no decurso do ano. Este tipo de comportamento é observado em inúmeras sociedades ao longo dos séculos e está vinculado ao conhecimento empírico, resultante da observação e das experiências.
Em outras palavras o senso comum está relacionado as históricas heranças culturais, ainda vinculadas aos costumes populares, orientações sobre a forma de pensar, agir, a diferenciação entre é o que é considerado correto e incorreto, entre o que entendemos como ser bem e mal… Podemos incluir, ainda os conselhos populares: “faz mal comer manga com leite”, ou ditados/expressões: “um dia da caça, outro do caçador”, “águas passadas não movem moinhos”. Estes são apenas algumas possibilidades de conhecimentos e ensinamentos que adquirimos ao longo da nossa trajetória de vida e que você provavelmente já deve ter escutado pelo menos uma única vez. Mas estes conhecimentos não são examinados e nem foram produzidos sob a perspectiva da análise crítica, ou seja, não são resultantes do uso do rigor científico.
Tendo em vista a compreensão sobre o que significa o conhecimento oriundo do senso comum, imagino que neste momento o leitor por ventura se questiona: Qual a diferença entre o conhecimento histórico científico e o senso comum? De maneira sintética, podemos compreender o conhecimento científico como aquele que passa pelas etapas ou processos de sistematização. Ou seja, perpassa a elaboração do planejamento de etapas a serem seguidas que coadunará na constituição de um conhecimento adquirido a partir da aplicação de rigor metodológico, teórico e documental. Entende-se por rigor metodológico a escolha de um procedimento adequado ao tipo de análise e objeto pesquisado.
O conhecimento científico impõe a necessidade de estabelecimento de um olhar analítico e racional no processo de constituição das informações. Ao passo que o senso comum é resultante de experiências pessoais e interpessoais. Já, o conhecimento científico é resultado de estudos apurados de exames metódicos, contínuo e inúmeras checagens. As conclusões resultantes da produção científica também não são estáticas. Na medida em que são descobertas novas teorias e novos métodos, uma explicação para um dado objeto ou tema pesquisado pode sofrer alterações, avanços, desconstrução, novas perspectivas. Enfim, o conhecimento científico é mutável, possui claro objetivo de explicar por meio do uso de técnicas racionais e objetivas.
Geralmente, quando pensamos em pesquisa científica, imaginamos laboratórios ligados à área biológica. Mas, e em relação a produção científica feita pelos pesquisadores da área de humanas, como é realizada? Bem, ao contrário do que muitos possam pensar, historiadores, geógrafos e sociólogos, por exemplo, utilizam o mesmo rigor em métodos na produção de suas pesquisas. Evidentemente, o objeto de estudo do historiador é o homem em diferentes contextos históricos, o que impõe a necessidade de aplicar procedimentos distintos. Um dos pilares da produção do conhecimento humanístico refere-se ao senso crítico, ou seja, ao exame aprofundo e racional que, tem como objetivo responder a questionamentos propostos e que variam de acordo com cada temática selecionada. Este é o conhecimento científico. Ao analisar o conceito de ciência o pesquisador Marivalde Moacir Francelin explicita que ciência relaciona-se a percepção de que nenhuma conclusão é definitiva, mas que para chegar à qualquer conclusão é preciso recorrer a elementos que estão desprovidos de elementos pessoais.
(…) a ciência é “[…] mais do que uma instituição, é uma atividade. Podemos mesmo dizer que a ‘ciência’ é um conceito abstrato.” O que se conhece “concretamente”, continua o autor, são os cientistas e o resultado de seus trabalhos. “O cientista contemporâneo sabe bem que nada há de definitivo e indiscutível que tenha sido assentado por homens” (Morais, 1988, p.24). A ciência não se reduz a experimentos, pelo contrário, é extremamente abrangente e complexa. O experimento científico como critério de cientificidade é ponto fundamental para o desenvolvimento das ciências exatas e biológicas ou da natureza, mais bem representadas pela física e pela biologia (especialmente através de seus desdobramentos disciplinares nas últimas décadas do século XX). (FRANCELIN, 2004, p.27)
Quando fazemos menção ao processo de construção do conhecimento científico livre das amarras das concepções e experiências pessoais, podemos destacar, por exemplo, o papel das crenças, dos valores pessoais, da religiosidade e da opinião pessoal como base argumentativa. O conhecimento científico ultrapassa as barreiras impostas para o estabelecimento de análises e interpretações racionais, que devem ser, via de regra, desprovidas do senso comum.
Como lidamos diretamente com o conhecimento histórico, nossas reflexões são voltadas para esta área. Sendo assim, a nossa opinião pessoal sobre este ou aquele personagem histórico não é válida na produção de um conhecimento histórico. Ter cautela quanto a análise e interpretação de fatos históricos não é responsabilidade apenas do historiador. Mesmo aqueles que não são formados na área, mas que se interessam por variados contextos históricos devem ter cuidado com a forma como conduzem as suas interpretações, sob o risco de contribuir com a difusão de um conhecimento equivocado e sem qualquer problematização.
Como dissemos, o objeto do historiador é o estudo do homem ao longo do tempo, assim como os seus condicionantes, sejam eles culturais, sociais, artísticos, políticos ou econômicos… Para realizar o processo de ‘reconstituição’ dos fatos históricos, o historiador recorre à uma gama variada de fontes, literatura relacionada ao tema e, utiliza por conseguinte métodos apropriados que deverá auxiliar a condução da sua proposta de pesquisa. Dessa forma, não cabe no processo de pesquisa a inserção da sua concepção pessoal sobre determinado tema ou objeto de pesquisa. Entende-se na história que a imparcialidade total não é possível. Qualquer pesquisador no ato da opção por determinado tema já emite por si só uma certa afinidade e interesse, que, por ventura, irá influenciar a condução da sua proposta analítica. Todavia, suas crenças pessoais, suas concepções de vida não devem, pois interferir na produção de sua pesquisa. A premissa também vale para o leigo que pretende aprofundar em obras de cunho histórico. Não é possível mesclar o apreço pessoal por determinado personagem histórico e com isso utilizar argumentos do senso comum para validar uma dada perspectiva. Fazer isso, apenas revela descaso e falta de aprofundamento analítico sistematizado.
Do mesmo modo, é preciso ponderar que o historiador não trabalha com a concepção de verdade histórica. Não é este o objetivo da produção da pesquisa em história. De acordo com o tipo de fonte selecionada para a produção da pesquisa – jornais, revistas, entrevistas, imagens, documentos oficiais – e, mediante a seleção de teoria e metodologia apropriada, o historiador pode chegar a conclusões que serão relacionadas ao seu eixo temático e problematização da proposta de estudo. Afinal, não existe verdade em história. Isso porque o historiador não pode chegar a verdade de um fato tal como foi. O seu trabalho consiste em, por meio de fragmentos/fontes, reconstituir uma versão de um dado fato ou objeto. Nesse processo, deve-se abster de introduzir ponderações de cunho pessoal.
Neste artigo nos propomos a traçar, de modo objetivo e didático, as principais diferenças entre conhecimento científico sob na perspectiva histórica, em contraponto com o senso comum. Muito embora o senso comum seja um elemento importante da formação do indivíduo, ele não deve ser utilizado como base para argumentação, não apenas em relação aos contextos históricos, mas nas várias áreas do conhecimento.
Referências:
FRANCELIN, Marivalde Moacir. Ciência, senso comum e revoluções científicas: ressonâncias e paradoxo. Ci. Inf., Brasília, v.33, n. 3, p.26-34, set./dez. 2004. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ci/v33n3/a04v33n3 > acesso em 9 de setembro de 2016.
MARROU, Henri I. Do conhecimento histórico. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010. v. 1
Olá, tudo bem? Marivalde é um pesquisador http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4730848P3
Obrigada pelo comentário. Farei o acerto no erro de digitação. 🙂