“Fair is Foul and Foul is fair”: Macbeth e James I

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Em 24 de março de 1603, morre a rainha Elizabeth I, após um longo reinado de 45 anos. A última monarca Tudor, entre erros e acertos, havia dado continuidade à consolidação da Inglaterra como nação relevante no contexto europeu, seguindo as políticas de seu pai, de seu avô e de seus irmãos. O país, porém, vivera décadas em sobressalto com relação à sucessão da rainha. Por fim, James, rei da Escócia, filho de Mary Stuart, torna-se o sucessor de Elizabeth, sendo coroado em 25 de julho. Ele reinaria por 57 anos na Escócia (cujo trono assumira ainda bebê) e por 22 anos como rei da Inglaterra, unindo as duas coroas. Foi, portanto, James VI da Escócia e James I na Inglaterra, inaugurando o período da Dinastia Stuart.

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Elizabeth I, última monarca Tudor.

James, a exemplo de Elizabeth, tinha apreço pela palavra escrita e pelo teatro. Um de seus primeiros atos foi transformar a companhia de Shakespeare em King’s Men, em substituição à Lord Chamberlain’s Men. Ou seja, o apadrinhamento da companhia foi posto diretamente sobre a proteção do rei. James também se mostrou um escritor profícuo. Escreveu várias obras, entre as quais podemos destacar o Basilkon Dorum (1599), escrito em forma de carta para seu filho Henry (que viria a falecer), aconselhando-o sobre as qualidades necessárias a um bom soberano. Também é durante o reinado de James que a língua inglesa receberá a sua versão definitiva da Bíblia, traduzida por uma equipe de estudiosos a mando do rei, entre 1604 e 1611.

Porém, não será esse aspecto da erudição de James que o tornará mais notório. Ainda durante seu reinado na Escócia, ele começaria a apresentar um interesse que, progressivamente, se tornará uma obsessão: a bruxaria, ou melhor, o combate implacável a essa prática – ou a simples crença na existência da prática.

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James I da Inglaterra.

Não é possível precisar quando James começou a interessar-se em bruxaria – que para ele era um ramo da Teologia. Podemos registrar, por exemplo a controvérsia que se estabeleceu entre James e o estudioso Reginald Scot. Enquanto James, em suas obras News from Scotland (1591) e Daemonology (1597), sustentava serem as bruxas criaturas com poderes sobrenaturais, capazes de interferir em fenômenos da natureza, como tempestades e secas, Scot em seu trabalho de 1584 The Discovery of Witchcraft , afirmava que as bruxas eram mulheres comuns, que iludiam as pessoas e a si mesmas. Mulheres feias, idosas, de má aparência, que se deixavam levar por superstições; católicas ou sem religião, sujeitas, portanto, a tentações demoníacas, embora não tivessem em si poder algum. Aliás, para Scot, atribuir poderes sobrenaturais às bruxas seria um “sintoma de catolicismo” – algo que, sem dúvida, James repudiaria com veemência.

A historiadora Tracy Borman especula que a morte violenta da mãe teria assombrado James desde a infância. Outro episódio violento da vida do monarca – seu quase naufrágio causado por tempestades quando navegava da Dinamarca para a Inglaterra com sua noiva Ana da Dinamarca, em 1589 – também pode ter contribuído para sua obsessão. A Dinamarca era, então, um lugar em que a teoria de que as bruxas eram perigosas e tinha um pacto com Satã era largamente aceita. Tão logo chegou à Escócia após essa terrível viagem, James ordenou uma violenta caça às bruxas, na qual cerca de 70 pessoas foram presas. Algumas delas, sob tortura, confessaram ter conjurado feitiços contra a esquadra real. A caça às bruxas tornou-se, daí em diante, fato corriqueiro na Escócia. Contribuiu também para isso a crença de que uma bruxa nunca agia sozinha – portanto, em um episódio de bruxaria acontecido em um determinado local, várias pessoas deveriam estar envolvidas.

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Mary Stuart, mãe de James I.

Ao assumir o trono da Inglaterra, James estava determinado a incutir em seu novo país o mesmo temor pela bruxaria que assolava a Escócia, onde cerca de 4000 pessoas pereceram sob acusações de bruxaria. James então manda publicar duas novas edições de seu tratado Daemonology, o que impulsionou a publicação de outras obras sobre o assunto feitiçaria, recriando no público um temor contra bruxas que havia ficado bem arrefecido nos tempos de Elizabeth.

Porém, o gesto definitivo de James com relação à bruxaria foi a promulgação do Witchcraft Act em 1604, que tornou o enforcamento obrigatório para um primeiro delito de bruxaria, mesmo se o acusado não tivesse cometido assassinato. Caso o suspeito tivesse a “marca do diabo” em seu corpo, isso seria suficiente para condená-lo à morte. O ato estipulava: “Se qualquer pessoa ou pessoas … utilizar práticas ou exercer qualquer invocação ou conjuração de qualquer espírito maligno ou mau, ou consultar, fazer aliança com, entreter, empregar, recompensar ou conjurar qualquer espírito maligno e perverso para ou por qualquer intenção ou a motivação … deve sofrer as dores da morte”. A determinação de James para acabar com a feitiçaria em todas as formas foi patente: “Todos os tipos de prática, a utilização ou o exercício de feitiçaria, encantamento, charme ou feitiço devem ser desde agora totalmente evitadas, abolidas, extintas.”

Neste ambiente, os dramaturgos e editores da época se preocuparam em trazer para o público obras que abordassem o assunto. Assim, o Doctor Faustus de Christopher Marlowe (já falecido) foi publicado e Ben Jonson, autor de mascaradas que eram apresentadas na corte, tratou de incluir bruxas e a bruxaria como elementos de vilania em alguns de seus espetáculos. Porém, a obra que ficaria para a história como a representação do mal, da bruxaria e seus efeitos deletérios sobre os homens seria Macbeth, de William Shakespeare.

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Macbeth, Folio de 1623.

Escrita provavelmente por volta de 1606, encenada em um teatro público em 1611, de acordo com o depoimento registrado de um espectador, Simon Forman e publicada no Folio de 1623, Macbeth é uma das tragédias mais conhecidas de Shakespeare. Porém, o fato mais notório sobre a origem da peça é a sua possível concepção intencional para agradar a James I.

A peça traz em si todos os elementos que ajudariam a legitimar a presença de James como soberano: a celebração de uma antiga linhagem (James seria descendente de Banquo), as referências críticas a eventos políticos da época (o Gunpowder Plot de 1605) e ao poder divino do rei (The King’s Evil) e, evidentemente, a presença das bruxas. A encenação para o rei e a corte teria acontecido em 7 de agosto de 1606, durante a visita do Rei Christian IV da Dinamarca, cunhado de James. Shakespeare, mais uma vez, teria se valido como fonte principal das Crônicas da Inglaterra, Escócia e Irlanda (1577), de Raphael Holinshed (1529 – 1580).

O enredo da peça é bastante conhecido. Macbeth, guerreiro a serviço do rei Duncan da Escócia, volta de uma batalha em companhia de Banquo. No caminho, encontram-se com três “estranhas irmãs” que lhe preveem o futuro: Macbeth será rei e Banquo será pai de uma linhagem de reis. Macbeth escreve à esposa, Lady Macbeth, relatando a profecia. Logo combinam entre si receber a visita do rei Duncan e após uma breve discussão, na qual Macbeth expõe seus temores e Lady Macbeth expõe sua ousadia, elaboram um plano para eliminar Duncan. De fato, o rei é morto por Macbeth. Quando o assassinato é descoberto na manhã seguinte, Macbeth mata os criados do rei para não haver suspeitas sobre ele. Macbeth termina assumindo o trono. Porém, vive sobressaltado, já que suspeitas recaem sobre ele. Os filhos de Duncan fogem da Escócia, um dos nobres, Macduff, suspeita de Macbeth. E ele não esquece da profecia que diz que os descendentes de Banquo serão reis. Decide portanto, eliminar Banquo e seu filho. Assassinos são contratados para a empreitada, Banquo morre, de fato, mas seu filho, Fleance, consegue fugir. Macbeth oferece um banquete aos nobres para celebrar sua coroação, mas durante o banquete o fantasma de Banquo surge para atormentá-lo e é visto somente por ele. Bastante abalado, Macbeth decide consultar novamente as bruxas e toma conhecimento de novas previsões: não será morto por ninguém nascido de mulher e não será derrotado até que a Floresta de Birman avance sobre Dunsinane. Ao mesmo tempo, uma aparição o adverte para ter cuidado com Macduff. Ao ser informado que este se encontra na Inglaterra, Macbeth resolve exterminar toda a família de Macduff, dando continuidade à espiral de violência. Enquanto isso, Lady Macbeth desenvolve um estado de demência, causado pelo remorso. Os nobres resolvem reunir-se para depor Macbeth, liderados por Malcolm, filho do falecido Duncan e por Macduff. Lady Macbeth é encontrada morta e Macbeth profere um dos solilóquios mais famosos de toda a obra shakespeariana, discorrendo sobre a fugacidade da vida. O exército inimigo avança sobre o castelo de Macbeth, usando galhos como camuflagem, o que cumpre uma das profecias. Ainda assim, ele enfrenta corajosamente os inimigos, certo de sua invulnerabilidade, até que se confronta com Macduff, que o derrota, após afirmar que foi “prematuramente arrancado do ventre de sua mãe”, não tendo, portanto “nascido de mulher” (Braunmuller observa que, à época de Shakespeare, uma cesariana significava a morte da parturiente, assim sendo, Macduff não era “nascido de mulher”, pois seria “nascido de um cadáver”.)

Dessa forma, Macbeth é derrotado, e os nobres da Escócia celebram a “liberdade”: Macduff aclama Malcolm como rei, prevalecendo assim a sucessão por herança, oferecendo ao novo soberano a cabeça do “tirano”.

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Pintura onde retrata Macbeth e Banquo encontrando as bruxas pela primeira vez.

A história se divide entre os que matam e os que são mortos, Macbeth passará de uma condição à outra. Vários comentadores destacam a atmosfera sombria da peça e a presença das bruxas, como elementos que reforçam a presença do Mal. Vê-se Macbeth como um criminoso, que usa o seu livre arbítrio com um único objetivo: matar. O crime parece ser o grande tema da peça. Sem dúvida, tanto o assassinato quanto a atmosfera sombria, da qual as bruxas fazem parte, são elementos constituintes da peça. Porém, o que os muitos parecem esquecer é o motivo da presença desses elementos. Eles não vêm simplesmente da “natureza humana” de Macbeth, mas sim do ambiente em que ele está inserido: o ambiente do poder, do governo e do Estado.

O grande tema da peça é, pode-se dizer, o poder e a sua sucessão. A grande discussão da peça gira em torno da legitimidade do soberano, da possibilidade ou não da usurpação e do quanto essas dúvidas com relação a quem deve conduzir os rumos de uma nação podem contaminar o seu ambiente. O ambiente enfermo que se pressente na peça não está ligado à figura de Macbeth em si, mas sim à Escócia. O destino da Escócia é o grande protagonista da peça e se torna uma metonímia para o destino de qualquer nação ou grupo humano organizado – daí a multiplicidade de adaptações e releituras que nos permitem ver Macbeth em lugares tão díspares quanto um ambiente corporativo, a máfia ou uma luta entre clãs zulus. É a natureza da política, mais do que a natureza do homem, a chave da peça. E as bruxas surgem como um elemento catalisador do mal presente nessa natureza.

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As bruxas de Macbeth.

Se as bruxas, portanto, interrompem a sucessão natural dos acontecimentos ou simplesmente ajudam a vir à tona a natureza maligna de Macbeth, é uma questão que, inteligentemente, Shakespeare deixa para a imaginação do público. De qualquer maneira, a peça confirma e introduz novos elementos para a visão estereotipada das bruxas, com suas magias, conjuros e mal inerente. Além disso, a presença de Lady Macbeth, com cúmplice dos crimes do marido e sua loucura final, também ajuda a criar um clima que envolve a associação entre o feminino e o maligno, tão presente na questão da bruxaria, o que levou muitos comentadores da peça a qualificarem Lady Macbeth como “a quarta bruxa”.

Podemos concluir, portanto, que o cerne da peça é a relação entre violência, sucessão e poder. Logo, tentativas de assumir o poder, seja por que meios forem, não podem ser pensadas como crimes comuns, tentativas de usurpação são formas de conquista de poder e de busca de novas perspectivas para o Estado. Se pensarmos que as ideias de Maquiavel faziam parte do conjunto de discursos presentes à época de Shakespeare, não ficaremos surpresos com muitos movimentos que vemos por parte dos personagens da peça. Conforme assinala Bignotto, na definição de Maquiavel, a virtú, qualidade indispensável ao governante para se manter no poder, diz respeito à capacidade do ator político de agir de maneira adequada no momento adequado. Reside aí a capacidade de conquistar e manter o poder. Se analisarmos desse ponto de vista, podemos pensar nos atos “criminosos” de Macbeth como lances de aplicação da virtú, já que cada um de seus passos lhe pareceu, nada mais e nada menos, que atitudes adequadas a cada momento, por mais macabros que eles possam nos parecer.

Shakespeare, portanto, está ao mesmo tempo saudando James e o alertando sobre o perigo das conspirações com relação ao Estado. E a bruxaria, nesse contexto, surge como um elemento ambíguo, que tanto pode reforçar ou enfraquecer a opinião do público sobre a adequação ou não de um monarca ao seu papel de chefe de Estado.

Semana das Bruxas – Acompanhe nossa série de artigos sobre o tema:
Mulheres, Rainhas, Bruxas – Um estudo sobre poder, misoginia e política na história;

Os Julgamentos das ‘Bruxas’ de Salem;

Madame de Montespan: De favorita do rei a ‘bruxa’ na corte de Luís XIV;

‘Bruxas’ teriam roubado pênis na Idade Média e os usado como “animais de estimação”;

Fontes:

BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Coleção Filosofia passo a passo, nº 29. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.

BRAUNMULLER, A. R. “Introduction” In SHAKESPEARE, William. Macbeth. The New Cambridge Shakespeare. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, pp.1-109.

KERNAN, Alvin. “The politics of madness and demonism.” In ______ Shakespeare, the king’s playwright. New Haven and London: Yale University Press, 1995, pp. 71-88.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. Ed. Robert S. Miola. Norton Critical Edition. New York and London: Norton, 2004

History Learning Site: AQUI – [James I and the Witchcraft]. Acesso em 2016.

History Extra: AQUI – [Shakespeare’s Macbeth and King James’s witch hunts]. Acesso em 2016.

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