Por Harry Leslie Smith, no The Guardian
O exuberante retrato da Rainha na Netflix integra uma longa lista de obras sobre o período que ignoram as vidas de homens e mulheres comuns.
O escritor L.P. Hartley disse: “O passado é uma terra estrangeira, as coisas aqui são diferentes”. Hartley não estava errado, pois eu, aos 93 anos tenho mais interesse na terra distante chamada História do que nos dias de hoje. Porém, se confiarmos na maneira pela qual os programas de TV têm interpretado a história da minha geração, eu não seria capaz de reconhecê-la. Infelizmente, os programas abordam os acontecimentos da minha juventude somente do ponto de vista do espetáculo da nobreza.
Temo que a história de minha geração esteja perdida para meus netos porque os produtores de TV preferem anestesiar os espectadores com a idolatria por soberanos e pela aristocracia do que mostrar o que houve de desagradável em nosso passado.
Por isso fico indignado em saber que a Netflix desembolsou 130 milhões de dólares nos dez episódios de The Crown. É uma cinebiografia que aborda a vida da rainha Elizabeth II, de seu casamento, enquanto ainda princesa em 1947, até sua coroação em 1953. Infelizmente, a série retrata a Inglaterra do pós-guerra do ponto de vista da soberana e daqueles à sua volta. Isto presta um enorme desserviço à visão sobre a época, pois foi um tempo em que a maré socialista esteve em alta. A História se fez literalmente de baixo para cima, porque, enquanto a rainha experimentava seu vestido de casamento, os britânicos comuns estavam desmantelando mil anos de mentalidade feudal por meio da criação do chamado estado de bem estar social.
Já vimos essa abordagem antes. Nada demonstra melhor a homenagem exuberante e melosa da TV aos ricos proprietários de terra do que Downton Abbey, a série em seis temporadas que funciona como uma interpretação de salão de baile dos momentos históricos que definiram a Grã-Bretanha na virada do século XX. Mas Downton, longe de ser uma exceção à regra, é um modelo da forma como os produtores de cinema e TV manipulam a verdade histórica e transformam a nobreza em heróis de narrativas sobre nosso passado coletivo.
The Crown, como Downton Abbey ou mesmo Indian Summers, descreve momentos da História como um desfile no qual os ricos, os detentores de títulos e a nobreza supervisionam as vidas de milhões com benevolência, sabedoria e graça. Eu, como testemunha e participante da história desde 1923, posso dizer que não foi assim. Milhões de pessoas viviam na mais abjeta miséria durante os anos 30, enquanto 1% desfrutavam de uma opulência obscena. A despeito da vasta riqueza da história do século XIX, a qual um roteirista de TV pode recorrer, a rica herança de nossa nação muitas vezes se torna propaganda da monarquia e do império.
The Crown é como uma pintura dispendiosa na qual os únicos sujeitos em foco são os ricos e os privilegiados. Qualquer outra pessoa, tal como eu ou meus avós, se forem oriundos da classe trabalhadora ou mesmo da classe média, não são considerados mais do que um pano de fundo. Somos os rostos indefinidos na multidão que acena religiosamente para os nossos ditos “melhores”.
Para mim, The Crown é um insulto às dificuldades que minha geração superou e aos triunfos advindos de nossos sacrifícios tanto na paz quanto na guerra. Porém, o mais ameaçador é que o quadro do passado mostrado na Netflix e em outras redes de TV, será a janela de muitos para a história de minha geração. Muitas pessoas viveram vidas frustradas nos séculos XIX e XX por conta da exploração que sofreram em minas e fábricas. No entanto, ninguém conta a história da sindicalização desses trabalhadores, lutando pelos seus direitos enquanto tentavam encontrar e manter o amor nas duras condições das favelas que eles chamavam de lar.
Muitos de minha geração morreram jovens devido à falta de dinheiro para pagar um médico, porém, em The Crown nossas simpatias são direcionadas a um rei moribundo por causa de um câncer no pulmão, em lugar de milhares de mineiros que morreram dolorosamente de antracose[1] porque a monarquia e sua sociedade não acreditavam que o cidadão comum merecesse medicação se não pudesse pagar por ela.
Nossa Rainha, não importa o quanto devamos respeitá-la pelos anos de serviço ao Estado, não merece ser transformada em um ícone cinematográfico. No grande painel dos eventos, nossa monarca é como um jardim ornamental posto de forma imutável no campo da História, porque ela não é a autora do destino de nossa nação.
Devido à austeridade do Brexit, a Grã-Bretanha se tornou uma casa dividida. Precisamos mais do que nunca que nossos grandes cineastas e produtores de TV contem histórias sobre nosso passado coletivo que reflitam toda sua dor e toda sua glória. E eles precisam contar a partir da perspectiva daqueles homens e mulheres comuns, brilhantes e profundos que, há tempos, ajudaram a moldar a maneira como vivemos hoje por meio de seus feitos.
[1] Lesão pulmonar causada por partículas de carvão, doença comum em mineiros.
Sobre o Autor:
Harry Leslie Smith é um ativista social, sobrevivente da Grande Depressão, e um veterano da Força Aérea Real (RAF). Ele escreveu vários livros sobre a Grã-Bretanha durante a depressão, sobre a guerra e o pós-guerra. Twitter @Harryslaststand.
“E eles precisam contar a partir da perspectiva daqueles homens e mulheres comuns, brilhantes e profundos que, há tempos, ajudaram a moldar a maneira como vivemos hoje por meio de seus feitos.”
– Downton Abbey além de elucidar todos os conflitos de uma família aristocrata também nos proporciona um deslumbramento das pequenas mudanças nas relações entre patrão e empregado consequentemente advindas do evento da Primeira Guerra Mundial. A série não é uma homenagem melosa aos ricos ou se pretende a isso. O interlocutor é levado a problematizar – mesmo que seja indiretamente – a respeito das relações existentes na série e como todas as conexões, sejam elas emocionais ou profissionais, acabaram tornando possível a percepção de como essas relações se modificaram com o tempo e os acontecimentos do século XX. O quadro de funcionários de Downton Abbey é composto por pessoas comuns que lutam por seus ideais ao passe que o distanciamento da aristocracia em termos de classe social passa a ser algo simplório se for comparado aos conflitos que ambas as esferas enfrentam juntas.
Eu gostei da crítica do autor no que tange a noção da prevalência de uma história voltada para a exaltação dos ditos “Grandes Heróis” que a mídia propaga nas massas não muito diferente do que foi feito no Brasil do século XIX pelos historiadores. A história também é feita por pessoas comuns, invisíveis como a professora da periferia que luta pela educação de qualidade em meio a conflitos sociais e culturais à exemplo do filme Escritores da Liberdade.
O que me incomoda é que provavelmente do autor do texto Harry Leslie Smith nem tenha visto ambas as produções e obviamente não se atentou ao fato: são representações de uma dada realidade e não verdades absolutas.
Por fim fico muito feliz de poder novamente acompanhar as pastagens da página diretamente no site.
Meninas(os) vocês fazem um ótimo trabalho! Parabéns ☺
Senhora, bom texto e bem motivado. Todavia, é necessário perceber que a série é sobre a vida de Sua Majestade, a Rainha.
Incontáveis filmes abordam a realidade triste da maioria das pessoas durante os pós-Guerras Mundiais.
Bom também é ver a história com os óculos daqueles que a guiaram de forma mais expressiva.
Iossef A. Barbarufos
Concordo em partes com isso, só que também não consigo ver como que vão narrar a história da Rainha sem contar com o luxo da nobreza.
vidaemserie.com