Atualmente, a análise da trajetória e figura de Ana Bolena não parece dar margem para o equilíbrio. Este não é um fenômeno do qual o Tudor Brasil se agrada, mas é um fato.
Ao trabalhar a trajetória de um personagem histórico, a análise aprofundada de fontes e registros do período deve ser amplamente dissecada, a fim de obter um novo vislumbre de suas facetas, seja através de releituras de registros, ou através de documentos até então desconhecidos.
Graças à tais releituras, a historiografia moderna vem dando espaço para que personalidades do período como Ana de Cleves e Catarina Howard, saiam de seus espectros moldados pela historiografia inglesa de meados do século XVII/XVIII, que as relegavam, juntamente com as outras esposas de Henrique VIII, através de uma visão misógina de estudo. Ana de Cleves, que era conhecida pelos livros de história como a esposa feia, hoje descobrimos que não agradou o rei por outros motivos; Catarina Howard, que era a tola e libertina, hoje descobrimos ter sido uma criança, e por isso, sujeita aos deslizes e equívocos de uma pessoa de sua faixa etária e experiência de vida.
As figuras de Jane Seymour como a esposa insossa, Catarina de Aragão como a fanática e Catarina Parr como a enfermeira, também vem sendo trabalhadas e reanalisadas. No entanto, um efeito curioso vem ocorrendo há alguns séculos com Ana Bolena. Executada por traição, Ana foi por séculos, ao lado de sua prima Catarina Howard, vítima do tempestivo julgamento inglês. Ela era uma traidora do reino, seu nome foi manchado e sua memória utilizada como lembrete do que não deveria ser feito ou encorajado. Com o romantismo do período vitoriano que, ‘resgatava figuras trágicas’ por assim dizer, a imagem de Ana saiu dos bastidores para entrar no protagonismo. Ela passou a ser a mãe zelosa, esposa de um barba azul. A mulher tornou-se mito, o demônio tornou-se um anjo, e sua história virou lenda. No entanto, isso diz muito sobre o modo como a figura de Ana sofreu com a dicotomia através do tempo, saindo do espectro vilã para heroína, sem um meio-termo.
Recentemente, com produções de grande orçamento como a série The Tudors e filmes clássicos como Ana dos Mil Dias, com seus scripts feministas e anacrônicos, a Ana heroína volta aos holofotes e continua a encantar diversas pessoas ao redor do mundo. Tal aspecto é importante, não para analisarmos sua trajetória em vida, e sim, em morte.
Do mesmo modo que uma renovação das produções historiográficas em relação à imagem de mulheres como Ana de Cleves, Maria I, Jane Seymour e Catarina Howard vem sendo realizada – e com êxito – pela historiografia atual, é preciso desconstruir o mito no qual a figura de Ana Bolena foi inserida.
Para isso, é necessário que registros sobre sua trajetória sejam dissecados, sejam eles considerados negativos ou positivos. Porém, a má aceitação de leitores em relação ao estudo que traz à tona aspectos não muito elogiosos de sua empreitada, é crescente e digna de nota.
Segundo os registros históricos, sabemos que Ana Bolena:
– Foi uma mãe que prezava pelos cuidados de sua filha – mostrando isso inclusive quando estava em cárcere na Torre de Londres – e das pessoas próximas a ela ou de sua família;
– Foi uma mulher refinada que era referência de estilo e elegância entre a Corte;
– Foi uma pessoa persuasiva, que cativava profundamente seus apoiantes e admiradores;
– Foi uma erudita, instruída nas maiores cortes européias e educada segundo o humanismo;
– Nutriu um genuíno interesse de que os espólios da dissolução dos monastérios fossem convertidos em investimento educacional, dinheiro para as universidades inglesas.
No entanto, sabemos também que:
– Existem registros históricos que falam de uma legião de mulheres e homens trajando vestes femininas, que foram em direção ao Palácio onde Ana encontrava-se, a fim de linchá-la.
– Existem registros históricos que falam que Ana exigiu a Henrique a roupa de batismo de Maria, traje este, que Catarina trouxe consigo da Espanha.
– Segundo uma correspondência de Chapuys, Ana e Henrique teriam pensado em chamar a jovem Elizabeth, de ”Mary”, a fim de simbolizar que a filha da então atual consorte do monarca inglês, suplantaria a filha de Catarina.
– Existem também registros de que Ana afirmou preferir ver os espanhóis mortos no fundo do mar, assim como preferia ver Catarina morta, a ter que chamá-la de ”sua senhora”.
– Segundo a historiadora Anna Whitelock, em seu livro ”Mary Tudor: England’s First Queen” ao descobrir que Maria (sua enteada) continuava a intitular-se princesa e recusava-se a reconhecer Elizabeth como a legítima princesa inglesa, ela instruiu sua tia que:
“Caso Maria continuasse a se comportar deste modo, ela deveria passar fome, e caso ela usasse o título banido de princesa, deveria ter suas orelhas batidas ”como a maldita bastarda que era”.
– Também segundo Whitelock, de acordo com fontes na Corte próximas a Chapuys, Ana foi escutada jurando mais de uma vez que, o quanto antes Henrique deixasse o país, fazendo dela sua regente, ela usaria sua autoridade para matar Maria ”seja por inanição ou qualquer outra coisa”.
Como uma página formada por historiadores e pesquisadores do período, nossa função é a de analisar e trazer aspectos da trajetória de um personagem histórico, mesmo que isso signifique gerar revoltas entre nossos leitores. É também importante salientar que, muitas pessoas acabam usando uma falsa simetria em relação aos registros do período, acatando apenas o que lhes é interessante e ignorando os demais aspectos que consideram mais controversos. Não estamos dispostos a trabalhar com dicotomia ou ocultar registros históricos, a fim de omitir aspectos que estes, considerem mais ‘desagradáveis’. Nossa função é trazer à tona um amplo leque de registros, não apenas sobre Ana Bolena, como também sobre outros personagens do período, que nos levem a um melhor vislumbre, não de um mito, de uma lenda, mas da vida de um ser humano e suas adversidades.
O que torna Ana Bolena tão complexa e interessante, não são apenas as coisas notáveis que realizou em vida, como também suas atitudes mais sombrias, seus deslizes, pois isso reflete sua natureza humana, e o modo que ela sentiu ser necessário agir diante da posição em que se encontrava, há quase quinhentos anos atrás.
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Ficamos felizes que tenha gostado, Roberta. Seja bem-vinda! 🙂
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