Eustace Chapuys Realmente Odiava Ana Bolena?

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Eustace Chapuys.

Considerando os muitos relatórios do embaixador, que foram fundamentais na interpretação moderna de Henrique VIII e suas esposas, a escritora e historiadora Lauren Mackay, reavalia o que pensamos que sabemos sobre uma das figuras mais controversas da corte Tudor.

Mackay revela como, ao invés de celebrar a queda de Ana Bolena, conforme muitos costumam acreditar, em realidade Chapuys declarou publicamente em 1536, que ela era inocente das acusações feitas contra ela. Neste artigo, Mackay considera porque a presença de Chapuys na vida de Ana Bolena, recebeu um aspecto mais sinistro do que o merecido.

”Cheio de aflição, venho eu, queixar-me”. Assim declara o pai de Hérmia na peça ‘Sonho de Uma Noite de Verão’ de Shakespeare. Esta também é a aflição do historiador quando certas figuras históricas são, a nosso ver, consistentemente deturpadas. Nossas paixões são inflamadas e nós nos preparamos para os defender. A história certamente julgou os membros da corte de Henrique VIII, particularmente suas rainhas, como pessoas que desfrutaram em excesso. Como um bom teatro, cada personagem engaja nosso interesse, e como qualquer drama magistral, ao olhar do leigo, sempre há vítimas e vilões.

Ana Bolena, segunda esposa de Henrique VIII, pode reivindicar ambos os títulos enquanto continua a levantar debate a respeito de seu papel no atrativo drama que testemunhou sua gloriosa ascensão e sua calamitosa queda. Assim também ocorre com Eustace Chapuys, cujas crônicas de mais de 15 anos como embaixador imperial de Carlos V nos dão muitas nuances e detalhes sobre o período Tudor.

Ana era a mulher que Henrique ansiava por ter. Sua determinação causaria discórdia em seu reino e por ela, o monarca abandonaria uma esposa e uma filha, resultando em muito sofrimento e, para alguns, morte. Nas cortes reais da Europa, Ana foi chamada de concubina ou prostituta, e era “o escândalo da cristandade”, segundo Catarina de Aragão. Mas o extremamente confiante e obcecado Henrique, desposaria Ana e a tornaria sua rainha – tudo o que ela tinha de fazer, era cumprir seu objetivo: gerar um herdeiro varão para o rei.

Por fim, Ana falhou em sua missão, e dentro de três anos de matrimônio, Henrique assinaria sua sentença de morte. Quase 500 anos depois, ainda estamos tentando desvendar eventos e entender quem engendrou sua queda.

Historiadores debatem intensamente as maquinações políticas e as muitas teorias de conspiração apontando para quem beneficiaria-se com a queda de Ana. Certamente Henrique era o maior beneficiário. O arrogante e supremamente impetuoso monarca, que passaria anos perseguindo seu ardente novo interesse amoroso, é, portanto, um dos principais suspeitos. Mas em sua defesa, alguns historiadores alegam insanidade temporária – afinal, Henrique havia ficado inconsciente por mais de duas horas, como resultado de um ferimento na cabeça, que sofreu durante um acidente de Justa, em Janeiro de 1536. Com base em evidências científicas atuais sobre concussão, isso pode ter contribuído para uma desestabilização em seu caráter de marido dedicado, para um monarca ciumento, suspeito e perigosamente errático.

Ou talvez a resposta fosse muito mais mundana. Seu amor e paciência para com sua segunda esposa (e seus acessos de raiva) havia diminuído ao longo dos sete anos em que Ana tinha sido sua amante e rainha, e Henrique queria deixá-la. Se Henrique estava interessado em derrubá-la, então talvez seu projetista-chefe e ministro, Thomas Cromwell, fosse a pessoa ideal para transformar a vulnerável posição de Ana, em vantagem política pessoal e para o rei.

Um homem obcecado:

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Thomas Cromwell.


O envolvimento de Cromwell na queda de Ana tornou-se uma obsessão para um homem, o embaixador imperial Eustace Chapuys, mas não pelas razões que poderíamos esperar. Chapuys encontrou-se realmente com Ana apenas uma vez [em abril de 1535], mas ela fascinou o embaixador, cujos relatos nos forneceram algumas das cenas mais duradouras e emocionais de seu notável, mas curto, reinado. Porém, a presença de Chapuys na vida de Ana, recebeu um aspecto mais sinistro do que merece. Se quisermos acreditar na análise de historiadores populares do século XVIII, Chapuys era um fofoqueiro que odiava Ana e trabalhou incansavelmente para destruí-la e até mesmo comprou sua morte. Se você acredita em tais fofocas, então esta peça terá um vilão. Mas este não era o caso.

Inúmeras cartas e relatórios entre embaixadores e monarcas, atravessavam a Europa, detalhando o affair público de Ana e Henrique. Chapuys foi talvez o mais prolífico desses escritores. Ele informou seu empregador, Carlos V, assim como seus confidentes, Maria da Hungria, governadora dos Países-Baixos, e outros colegas diplomatas, às vezes duas ou três vezes em um dia. No entanto, pode ser surpreendente saber que, alguns dos relatos mais ácidos sobre a aparência e comportamento escandalosos de Ana, não foram escritos por Chapuys e sim, por embaixadores franceses, espanhóis e venezianos. A julgar por estes relatórios, Ana era um alvo favorito de boatos e foi geralmente duramente julgada pelo povo inglês e por toda a Europa.

Mas talvez seja um relatório anônimo, sem assinatura, encontrado entre os documentos imperiais e erroneamente atribuído a Chapuys (que sempre assinava suas cartas) que causou o maior dano à sua imagem. Referindo-se à coroação de Ana em 1533, um escritor disse: “A coroa a deixou muito doente, e uma verruga a desfigurou bastante. Ela usava um manto de veludo roxo, com uma gola alta com fios de ouro e pérolas, que ocultava seu inchaço, semelhante a um bócio (sic)”. É um relatório áspero de fato, mas não eram palavras de Chapuys.

Outros historiadores interessados em desvalorizar os relatos de Chapuys, afirmam que ele estava tão desgostoso com a coroação de Ana, que enfureceu-se em suas acomodações, recusando-se a ser uma testemunha dos acontecimentos. Pelo contrário, os relatórios de Chapuys estão repletos de detalhes deste evento histórico, colocando-o claramente no meio dos quatro dias de festividades. Suas únicas críticas em seu vasto relatório sobre a coroação, eram as observações dele de que os londrinos não estavam muito alegres com o evento, mas ele parece ter deleitado-se com o fabuloso espetáculo no Tâmisa, repleto de barcos coloridos, e se entretido em um banquete realizado na barca do embaixador alemão durante as comemorações.

A Concubina:

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Uma das ficções mais prevalecentes, e certamente a que mais tem manchado a reputação de Chapuys, diz respeito a suas referências à Ana em seus despachos. Tornou-se um fato aceito que durante toda a sua embaixada, os apelidos escolhidos por Chapuys para Ana, foram “la Putain” e “a Concubina”. Outro termo, “a Senhora”, também foi interpretado de modo depreciativo, embora Chapuys regularmente usasse isso para outras mulheres na corte também. Tudo isso foi acrescentado ao drama, mas foi muito maximizado.

Chapuys chegou à Corte em 1529, mas ele referiu-se pela primeira vez à Ana como “a concubina” em uma carta acalorada em 1533, e depois, não novamente até 1535, até a sua execução. A maioria de suas cartas se referem a ela como “a Senhora” ou “Senhora Ana”, “a nova Marquês” e assim por diante. Ele nunca a chamou de sua rainha. É verdade que Chapuys ocasionalmente se referia à filha de Ana, Elizabeth, como “a pequenina bastarda”, mas mais frequentemente era simplesmente “a filha do rei”, ou “a outra filha”. Por que, então, a visão de que Chapuys apenas usava termos pejorativos para Ana e Elizabeth é tão explorada? A resposta, provavelmente, deve-se a um caso de identidade trocada.

Enquanto Chapuys (na maioria do tempo) absteve-se de insultos, Pedro Ortiz, procurador de Catarina de Aragão em Roma e um de seus defensores apaixonados, escreveu relatos bastante ácidos sobre Ana a Chapuys e Carlos. Na maioria de suas cartas, Ortiz referia-se à Ana como “a concubina”, e assim o fez em 1531 [Catarina e Henrique se divorciaram em 1533 e o monarca casou-se com Ana nesse mesmo ano]. As descrições pejorativas de Ana pertencem mais a Ortiz, mas se tornaram ligadas a Chapuys; Em minha opinião, os dois personagens foram misturados. Carlos V (sobrinho da rainha Catarina) também referiu-se à Ana de modo depreciativo, e muitos de seus embaixadores imperiais foram guiados por sua escolha de palavras.

O senso comum de que Chapuys estava cego por seu ódio à Ana, permitiu que os historiadores do passado, o descartassem como um fofoqueiro excessivamente dramático. No entanto, relatando todos os detalhes, por mais imaterial que fosse, Chapuys estava simplesmente cumprindo seu dever. Longe de acreditar em todas as informações passadas para ele, especialmente quando relatavam uma possível briga entre Henrique e Ana, Chapuys frequentemente advertia quando a informação deveria ser de âmbito questionável.

É importante lembrar que, embora Chapuys só tenha realmente conhecido Ana uma vez, ele mais do que ninguém conseguiu capturá-la em seu caráter de escrita: seus humores, inseguranças e crescente impaciência, mas também seus momentos de triunfo. E na Páscoa de 1536, Ana, sem dúvida, sentiu-se triunfante. Sua rival, Catarina de Aragão havia morrido em janeiro, significando que Ana Bolena era finalmente e indiscutivelmente a rainha.

A ironia era que ela estava agora mais vulnerável do que nunca: o afeto de Henrique tinha diminuído e ele estava atento à dama de Ana, Jane Seymour. Politicamente Ana era vulnerável. Catarina havia pelo menos levado o Sacro Império Romano à mesa, através de seu sobrinho Carlos V. Ana havia buscado uma aliança francesa por sua conexão com Francis I e sua corte, mas a França era um aliado pouco confiável. Em 1535/36, Thomas Cromwell pode ter começado a reconsiderar o uso de Ana no tabuleiro político. Tal vulnerabilidade levaria a um evento sem precedentes em 18 de abril de 1535, logo após a Páscoa, quando Ana e Eustace Chapuys se encontraram cara a cara pela primeira vez. O evento foi certamente significativo, mas há muito tempo foi mal interpretado. Então, o que realmente aconteceu entre a rainha e o embaixador?

Uma Rainha não reconhecida:

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Carlos V.

Carlos ainda não havia reconhecido Ana, e assim, Chapuys, representante do Imperador na corte Tudor, tampouco poderia fazê-lo. No entanto, de acordo com o seu relatório de Páscoa, Chapuys parece ter antecipado uma reunião. Parecia resignado ao fato de que, com a perspectiva de paz no ar, em algum momento teria de reconhecer Ana como esposa e rainha de Henrique. Mas havia mais do que isso. Ana também se recusara a reconhecer oficialmente Carlos ou seu embaixador, mas agora estava ciente da necessidade de uma aliança imperial. Teria que reconhecer Carlos, e isso significava reconhecer Chapuys.

A paz estava na vanguarda da mente de Chapuys quando se aproximou de Henrique após a Páscoa, com cartas de Carlos para o monarca. Tanto Chapuys como Thomas Cromwell estiveram trabalhando juntos por vários meses a fim de criar uma aproximação entre os dois monarcas, em uma tentativa de curar a fenda causada pelo divórcio de Henrique. Com Catarina de Aragão morta e portanto, fora do tabuleiro, Carlos estava disposto a reconhecer Ana, aceitar o casamento e finalmente caminhar rumo à paz.

Mas nada estava definido.

Antes da missa, Cromwell perguntou em particular se Chapuys consideraria encontrar-se com Ana, mas o embaixador não poderia fazer tal movimento antes de qualquer tratado ter sido assinado. Ele relatou que “Antes que o Rei saísse para a missa, Cromwell procurou-me para perguntar se eu não iria visitar e beijar a Concubina. Pensei … tal visita não seria aconselhável, e implorei a Cromwell que desculpasse, e dissuadisse a referida visita”.

Ao longo de sua embaixada, Chapuys manteve-se em bons termos com os homens Bolena. Vários de seus relatos a Carlos mencionam jantares privados com Thomas e George, pai e irmão de Ana, e ele havia encontrado-se com George nesta manhã em particular, antes da missa. No entanto, ele notou que George parecia excessivamente entusiasmado, fazendo um show, falando com o embaixador para o proveito da Corte. Esta ostensiva demonstração de amizade colocou Chapuys em guarda enquanto George o acompanhava para a missa. Ele relatou que “fui conduzido à Capela por Lord Rochefort, o irmão da concubina, e quando a oferenda (da missa) começou, um grande número de pessoas reuniu-se ao redor do rei, por curiosidade, e desejando saber sem sombra de dúvida que tipo de comportamento eu e a concubina teríamos”. Toda a corte parecia estar aguardando ansiosamente por tal evento.

O que ocorreu é considerado um dos eventos mais dramáticos e significativos dos últimos meses de Ana. Se enxergarmos Chapuys como o vilão da peça, este evento pode ser interpretado como o último triunfo de Ana sobre Carlos, fazendo Chapuys parecer tolo. Isso certamente daria uma boa história. Mas o que Chapuys realmente conta a Charles difere significativamente da versão mais popular, que conta que Chapuys foi manipulado e “enganado” para reconhecer Ana.

Em seu relatório original, Chapuys deixa bem claro que George estava ao lado dele e ele, não se opôs a ser levado para onde o casal real iria passar. Henrique e Ana desciam da capela real e se dirigiam ao altar. Chapuys escreveu: “Devo dizer que ela foi suficientemente afável na ocasião para que eu fosse colocado atrás da porta pela qual ela entrou na capela, ela virou-se para retribuir a reverência que fiz quando ela passou”. 

O senso comum nos diz que Ana parou na frente de Chapuys, que foi então forçado a curvar-se, para o prazer dela e do monarca. Mas devemos ter em mente que Chapuys diz que já estava curvado quando o casal real passou; Foi Ana quem se virou e reconheceu a demonstração de respeito do embaixador. Chapuys estava demonstrando que estava disposto a fazer esta pequena demonstração de reconhecimento, e Ana estava formalmente reconhecendo e respeitando Carlos V, por intermédio de seu embaixador.

Isso foi importante para ambos os lados. Tendemos a nos concentrar no significado do evento para Ana, mas devemos reconhecer que isso foi igualmente significativo para Carlos. Foi sugerido que o rei e Cromwell haviam arquitetado o evento para enviar um sinal para Carlos de que Henrique não poderia ser manipulado para uma aproximação, mas isso é altamente improvável, uma vez que o Imperador já estava disposto a aceitar Ana como parte de uma aliança.

Ana estava em uma posição fraca e foi um movimento político astuto reconhecer Carlos através de seu embaixador. Suas ações após a missa são ainda mais intrigantes. Chapuys jantou com George e Thomas Bolena, juntamente com outros conselheiros, mas Ana também expressou o desejo de jantar com o embaixador. Ela tentou congraçar-se ainda mais com Carlos, ofendendo publicamente do embaixador francês (algo que o próprio Chapuys costumava fazer em particular), que certamente relataria o incidente. Ana havia mudado de tática, mas isso não a salvaria.

Uma admiração sincera:

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A descrição final de Chapuys de Ana é um testemunho do tipo de mulher que ela era. Além do drama do divórcio, das disputas ciumentas e do modo que tratava Catarina e a filha de Henrique, Mary, Ana era, aos olhos de Chapuys, inocente das acusações feitas contra ela. Suas palavras são sinceras em sua admiração: “Ninguém jamais mostrou mais coragem ou maior prontidão para encontrar a morte do que ela, tendo, conforme diz o relatório, implorado e solicitado aqueles sob cuja guarda ela estava, para acelerar a execução. Quando as ordens vieram do rei para que a [execução] se atrasasse até o dia de hoje, ela parecia pesarosa, implorando e suplicando ao governador da Torre, pelo amor de Deus, para que fosse até o Rei, implorar-lhe que, estava bem disposta e preparada para a morte, ela deveria ser morta imediatamente”.

Desde a sua execução quase 500 anos atrás, a história de Ana continua a nos impressionar, como fez com Chapuys. O que quer que sentisse em relação à Ana, no entanto, ele admirava sua inteligência e perspicácia política. Os aliados de Ana a abandonaram durante seu julgamento, e a Corte, que outrora a admirou e serviu como rainha, ficou em silêncio. Mas Chapuys não conseguiu. Na verdade, ele foi um dos poucos que publicamente declarou que ela era inocente e vítima de um golpe político.

A execução de Ana assombrou o embaixador. Conforme ele escreveu a Carlos: “A espada do carrasco e sua própria morte ocorreram de fato, para separar e divorciar homem e mulher. No entanto, se tal era sua intenção, parece-me que teria sido uma desculpa muito mais decente e honesta, alegar que ela havia sido casada com outro homem ainda vivo”. Chapuys também escreveu: ”Que Deus permita que esta possa ser sua última loucura [de Henrique]”.

Nós sabemos que não seria.

Independentemente dos sentimentos pessoais de Chapuys em relação à Ana, sua admiração e respeito por uma das mulheres mais sedutoras da corte de Henrique, quando todos os outros expressaram sua condenação, é um elemento fascinante da vida do embaixador. Seu relacionamento com ela, obtido a partir de inúmeros relatos, dá a impressão de duas pessoas que sofreram uma relação complexa, apesar de terem se encontrado apenas uma única vez.

Relatórios e despachos de Chapuys foram muitas vezes distorcidos a fim de adequarem-se a algum propósito dramático. Aqueles que questionaram o caráter e a integridade do embaixador enquanto fonte, poderiam estar influenciados pela idolatria de Ana como a rainha injustiçada. Continuamos nos concentrando em potenciais culpados por trás da queda de Ana, mas, séculos mais tarde, a verdade teima em permanecer fora de nosso alcance.


FONTES:
History Extra: AQUI.

 

 

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