Atualmente, em diversos locais do globo, a morte é tratada como um Tabu por vários povos e culturas diferentes. No entanto, há séculos atrás – como, por exemplo, no período Medieval – com as pestes e guerras assolando povos e reinos, a morte era uma verdade inegável, presente em todos os cantos e à espreita. Durante o período vitoriano, com o revivalismo de algumas vertentes de pensamentos e correntes filosóficas medievais (como por exemplo o movimento, ‘Memento Mori’) o ritual do luto passou a ser amplificado e compreendido de modo complexo e multifacetado.
Durante o período que compreende-se como sendo a ‘Era Vitoriana’ (1837-1901), na maior parte da Europa e América, fotografar os mortos passou a ser considerada uma prática comum. Para compreendermos um pouco melhor tal costume, vamos retroceder um pouco mais no tempo, para meados do século XVII e XVIII. A fotografia post-mortem evoluiu a partir dos chamados ‘retratos póstumos’ – um tipo de pintura onde os europeus mais abastados retratavam membros falecidos de suas famílias, ao lado de uma série de símbolos, signos, cores e gestos associados à morte. Enquanto as pessoas – geralmente crianças – nestas pinturas podem parecer razoavelmente saudáveis, a presença de um pássaro morto, um cordão cortado, um crânio, frutos ou flores caídas, ou até mesmo referências à santíssima trindade, muitas vezes poderia sinalizar que o retratado estava, em realidade, falecido. Tais tipos de pinturas serviam como lembranças destas pessoas amadas e entes queridos que há muito se foram.

Com o início da fotografia, as táticas utilizadas para preservar à memória de um ente querido foram adaptadas e décadas depois, em 1840, com sua popularização, o trabalho do pintor passou a ser substituído pelo de um fotógrafo e a produção de retratos memoriais passou a acontecer, do Atelier de um pintor, para o estúdio de um fotógrafo. Antes da fotografia tornar-se mais barata e popular entre o povo, o processo utilizado na época chamava-se Daguerreótipo, que era essencialmente uma imagem colocada em um placa de prata – um luxo dispendioso que nem todos podiam pagar na época. Considerando que as pinturas, algumas vezes, poderiam custar grandes somas em dinheiro e os Daguerreótipos costumavam ser itens de luxo, os Ambrótipos (uma imagem fotográfica positiva sobre placas de vidro, usando uma variação do processo de prata coloidal) e as Ferrotopias (processo fotográfico que consiste na criação de uma imagem positiva sem negativo, diretamente sobre uma chapa fina de ferro revestido com esmalte escuro) posteriores, agradaram aos bolsos de todos, custando às vezes, apenas poucos centavos.
Para os vitorianos, as fotos post-mortem eram apenas mais um dos aspectos de um elaborado e complexo ritual de luto, que muitas vezes, compreendia em cobrir a casa e o corpo de vestes negras, além de lavar o cadáver e vigia-lo. Quando alguém falecia, seu corpo era velado na casa, permanecendo no local até o dia do enterro. Neste momento entre o velório e o sepultamento – que poderia durar vários dias – flores seriam colocadas ao redor do corpo, não apenas para amenizar o visual, mas também para disfarçar qualquer possível odor da decomposição. Às vezes, havia tantas flores que quase não se podia ver o corpo. As fotos iniciais deste tipo de ritual, eram referidas como ‘espelhos de memórias’ e os vitorianos viam no ato de fotografar os mortos, uma maneira de preservar a memória de um membro da família. As fotos dos mortos eram mantidas como lembranças, exibidas em casas, enviadas a amigos e parentes ou até mesmo usadas em broches, ou dentro de espelhos de bolso.

Fotografar os mortos, no entanto, era um negócio complicado e exigia uma manipulação cuidadosa do corpo, adereços e equipamentos – seja no estúdio do fotógrafo ou na casa do falecido. Embora a maioria das imagens post-mortem retratasse os mortos colocados em uma cama ou caixão, muitas crianças eram retratadas em posição “adormecida” colocadas em suas camas ou em cadeiras. Elas não raramente eram colocadas no colo de suas mães, a fim de mantê-las mais eretas (ecoando a moda vitoriana dos retratos da ‘mãe escondida’’, nos quais uma mãe ou assistente era envolta em tecido como pano de fundo, obtendo vários graus de sucesso neste empreendimento). A maioria dos retratos post-mortem da época, eram feitos em crianças menores de um ano de idade. Não era incomum que fossem retratadas com algum objeto em que nutriam apreço durante a vida – no caso de crianças, um brinquedo favorito e em adultos, um livro, uma escopeta, ou até mesmo um relógio. Os adultos, por sua vez, apareciam mais frequentemente dentro de caixões, mas ocasionalmente eram fotografados em camas ou cadeiras.
De certo modo, as dificuldades nas fotografias post-mortem podem ser analisadas a partir das observações do fotógrafo daguerrotipista, Albert Southworth, impressas em uma edição de 1873 da revista ”Philadelphia Photographer’’:
”Se uma pessoa morresse e os amigos temessem que houvesse um líquido saindo de sua boca, uma pessoa poderia cuidadosamente virá-la como se estivesse sob a operação de um emético [remédio que induz o vômito]. Ela poderia fazer isso em menos de um minuto e todas as coisas sairiam e o rosto poderia ser lavado, podendo então lidar com isso [os cadáveres] tão bem como se fossem pessoas normais’’.
Atualmente, muitos mitos acerca das fotografias post-mortem circulam na internet e entre o público de um modo geral. Um dos maiores enganos a respeito do tema, segundo Mike Zohn (co-proprietário do antiquário ‘New York’s Obscura Oddities and Antiques’ e colecionador de longa-data de fotografias post-mortem) é que, nos dias de hoje, vários sites com supostas fotografias de vitorianos falecidos no momento da foto, estão repletos de imagens que foram tiradas de pessoas que estavam vivas e que foram erroneamente classificadas como mortas por pessoas com pouco conhecimento no assunto. Rostos borrados, a presença de uma postura mais “rígida’’ e olhares vazios indicando a morte, são pouco confiáveis ou ficcionais para basear-se na afirmação de uma fotografia post-mortem. Por fim, a maioria dos sites mostra um amálgama de imagens reais e de falsas fotografias post-mortem.

Segundo Mike Zohn, os vitorianos “não viam nenhum problema em mostrar que as pessoas mortas estavam, de fato, mortas”. “Eles não tentaram fazê-los parecer vivos; isso é um mito moderno!”. Ele adverte que o Pinterest e outros sites estão cheios de imagens de pessoas vivas que foram erroneamente rotuladas como mortas, às vezes, com explicações bastante elaboradas (embora incorretas) dos tipos de ferramentas que foram usadas para mantê-las apoiadas em determinadas posições. “Os vitorianos também não usaram cordas, fios, sistemas em ferro ou qualquer outra coisa para posicionar seus mortos’’, acrescenta Zohn. ”Eles não eram fantoches de carne que estavam sendo amarrados, manipulados ou tratados como pedaços de carne. Eles [os vitorianos] eram respeitosos e tratavam seus mortos com dignidade!’’.
No entanto, toda regra tem sua exceção se analisada de modo amplo. Fotógrafos forenses no final da era vitoriana, por exemplo, tentavam restaurar corpos parcialmente decompostos e depois fotografá-los de pé ou sentados (clique no link para ver um exemplo: Imagem forte). O médico romeno Nicolas Minovici ficou famoso por seus métodos inovadores de restauração de cadáveres para posterior identificação. Minovici substituía os olhos por aparelhos artificiais ou até mesmo os pintava. Ele usava pequenos pinos para corrigir o rosto, dando-lhes várias expressões. Mas é claro, este era outro cenário a ser analisado, que ia muito além do luto familiar e da fotografia popular do período.

Parte do problema, escreve o colecionador de fotografia post-mortem e o estudioso Stanley Burns (em sua tese que depois viraria um livro, intitulada ”Burns in Sleeping Beauty II: Grief, Bereavement and the Family in Memorial Photography, American & European Traditions’’) é que os mortos do século XIX muitas vezes pareciam melhores que os mortos atualmente. Hoje, tendemos a prolongar a vida com medidas que não estavam disponíveis para os vitorianos, mas as epidemias do séculos XIX mataram rapidamente. ”Com a excessão de crianças que morriam por desidratação ou por algum vírus que deixava erupções cutâneas visíveis, ou adultos que sucumbiram ao câncer ou idade extremamente avançada’’, escreve Burns, ”os mortos muitas vezes pareciam ser bastante saudáveis’’.
Zohn adverte particularmente contra a idéia de que os vitorianos criavam estruturas para posar seus mortos na posição vertical para fotos populares (e não, é claro, as utilizadas pela polícia, conforme citamos acima). ”O aparelho postural é similar em design e força a um suporte de microfone moderno’’, diz ele. ”Não há como suportar o peso de um cadáver. Se você vê uma foto com uma pessoa com um suporte em suas costas, esta é uma das garantias de que ela estava viva no momento da foto’’.
Mas à esta altura, muitos leitores devem estar se perguntando: ”E aqueles bebês que usavam estes dispositivos ou estavam tortos e de olhos fechados enquanto seus irmãos estavam eretos e de olhos abertos nas fotos?”. Bom, a resposta está claramente no fato de que eles eram bebês! Eles não tinham noção que deveriam ficar em determinadas posições ou de olhos abertos tempo o suficiente para que a foto pudesse ser tirada com êxito. Isso não prova, em absoluto, que eles estavam mortos durante a execução dos retratos.
Jack Mord, que administra o website ‘Thanatos Archive’, focado no tema post-mortem, concorda a respeito dos aparelhos de postura. ‘‘As pessoas vêem as bases destes aparelhos em fotos e assumem que estavam lá para apoiar uma pessoa morta… mas este não era nunca, o caso!’’. ”Basicamente, se você vê um destes aparelhos em uma foto, este é um sinal imediato de que a pessoa na foto estava viva, e não morta’’.
Ambos, Zohn e Mord, também apontam que muitas pessoas têm uma percepção errada sobre a forma como a fotografia supostamente era cara durante o século XIX. Zohn diz: “Você poderia facilmente obter um Ambrótipo por menos de cinco centavos – em alguns casos, tão barato quanto um ou dois centavos. Estava bem ao alcance de quase todos da escala social, exceto os muito pobres, mas alguns acreditam, de modo equivocado, que a fotografia era algo tão caro, que eles só podiam se dar ao luxo de ter uma imagem tirada e que esta teria sido post-mortem”. “Embora isso possa ter sido verdade na época em que a fotografia foi introduzida pela primeira vez – e é verdade que os post-mortem podem ter sido a única foto já feita de um bebê – esta não era uma regra geral”.
Alguns livros sobre fotografia post-mortem mencionam verificar as mãos para sinais de que o sujeito está morto, observando que o inchaço ou a descoloração podem ser um sinal de Pallor ou Rigor mortis. Mas Zohn diz que é fácil interpretar esta pista equivocadamente: “Eu vi muitas imagens de pessoas claramente mortas com mãos coloridas, bem como pessoas claramente vivas com mãos escuras. Geralmente isso era causado por iluminação e exposição, mas também poderia ser algo como mãos bronzeadas que pareceriam mais escuras. O nível e a cor da iluminação, pequenos movimentos de cada pessoa, pequenos movimentos da câmera. Na era não-digital não-instantânea, um borrão ocasional era algo inevitável. A clareza não significa necessariamente morte”. ”Uma pista melhor”, diz Zohn, ”é o simbolismo, como flores, mãos dobradas, olhos fechados. Um adulto deitado esticado em uma cama com seus sapatos fora de seus pés, pode ser um sinal de uma fotografia post-mortem, uma vez que os sapatos podem ser difíceis de colocar em um cadáver. E, claro, se alguém está deitado em um caixão, há uma boa chance de estar morto!”.
Para nós, a prática da fotografia ‘Post-Mortem’ pode parecer muito mórbida, e muito do que acreditávamos saber sobre ela, mostra-se um mito. No entanto, em uma época em que as crianças e muitos adultos morriam antes de seus pais e onde a idade média de vida de um adulto era de 29 anos, essa era uma prática reconfortante para poder manter a memória de um ente querido preservada por anos. É uma imagem estática de algo que eles podiam guardar e olhar. Atualmente, esta prática pode parecer um tanto estranha, mas em anos vindouros, alguém provavelmente também pode estranhar o fato de colocarmos maquiagem em nossos falecidos e isso diz muito sobre a sociedade e período em que vivemos. Quando visto em retrospectiva, o ato é relativamente semelhante em todo o processo de luto e cada um de nós encontrou/encontra, através dos séculos, uma maneira de suportar a perda.

No ocidente, em meados de 1930 – uma vez que os costumes sociais passaram a obter um significativo distanciamento do luto público prolongado e as doenças tornaram-se mais rapidamente detectáveis e medicáveis, consequentemente diminuindo as taxas de mortalidade infantil – as fotografias post-mortem passaram a desaparecer do mercado. Porém, ”os post-mortem nunca realmente acabaram’’, diz Zohn. Hoje em dia, várias empresas se especializam em tirar fotos de bebês ou recém-nascidos mortos e a prática da fotografia post-mortem continua como um evento regular em outras partes do mundo.
Atualmente, a maioria das pessoas decidiu que, a imagem final da pessoa viva (e não morta), é aquela que realmente queremos nos recordar. A morte nos dias de hoje é vista como um Tabu e torna-se fácil para nós nos desligarmos dela, segundo aponta a agente funerária e autora estadunidense, Caitlin Doughty, em seu livro ‘Confissões do Crematório – Lições Para Toda a Vida’:
”Escondemos a morte com tanta habilidade que quase daria para acreditar que somos a primeira geração de imortais…’’.
No entanto, para os vitorianos, a morte não era estranha, ou sequer um Tabu; ela era algo comum, presente e à espreita naquela sociedade. Burns escreve que as fotografias Post-Mortems ‘‘foram tiradas com a mesma falta de autoconsciência com a qual o fotógrafo de hoje pode documentar uma festa ou um baile”.
Bibliografia:
Skepticink (Acesso em Janeiro de 2018): [https://www.skepticink.com/incredulous/2016/06/19/myth-victorian-post-mortem-photography/]
Mental Floss (Acesso em Janeiro de 2018): [http://cms.mentalfloss.com/node/90118/mirrors-memories-why-did-victorians-take-pictures-dead-people]
DOUGHTY, Caitlin; Confissões do Crematório – Lições para toda a vida; DARKSIDE, 26 de Julho de 2016.
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