Dissecando a Vênus – Conhecendo os Manequins Anatômicos do Século XVIII

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Inicio este artigo com a premissa de: O que é o belo? O que é ser belo? Como se sabe o conceito do belo muda com o passar do tempo. O que outrora, foi lido ou interpretado como sendo uma representação de beleza, pode, séculos depois, carregar outro significado. E uma vez que, o objeto da análise em questão, transita em campos distintos, como expressão artística e ciência, tudo se torna ainda mais abrangente.

Geralmente com longos e espessos cabelos – que derramam-se como cascata sobre seu corpo gélido – um rosto arredondado e quase áureo – com expressão de profundo êxtase e torpor -, e um corpo levemente contorcido, enquanto suas entranhas ficam à mostra, revelando por debaixo de uma complexa criação em cera, um intrincado amálgama entre arte e ciência, a figura, atualmente conhecida como ‘‘The Anatomical Venus”, ou ‘‘Vênus Anatômica” (em tradução livre), vem aguçando a curiosidade das pessoas ao redor do mundo.

Muitas vezes reclusas em redomas de vidro veneziano e madeira de jacarandá – a maioria exposta em grandes museus da Europa, embora outras estejam em casas especializadas em oferecer ao público, uma leitura contemporânea do ”bizarro” – os modelos da ‘Vênus Anatômica’ nos fornecem, tanto uma leitura do modo como a arte e a ciência estavam intrinsecamente ligadas no século XVIII, quanto o modo como nossa sociedade interpreta como tênue a linha entre o belo e o bizarro.

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Josephinum, Collections and History of Medicine, MedUni Vienna/Foto de Joanna Ebenstein.

Com faces dignas de um retrato de Tiziano Vecelli, Sandro Botticelli, ou qualquer outro pintor italiano do renascimento, estes modelos anatômicos muitas vezes carregam em seus ventres expostos, minúsculos fetos incrivelmente precisos. De acordo com Joanna Ebenstein, co-fundadora do Museu de Anatomia Mórbida em Nova York, e autora do livro ”The Anatomical Venus’’, tais modelos ”…Dizem algo diferente para nós hoje, do que queriam dizer na época’’. Enquanto que, para muitos, tais figuras representem certa repugnância, séculos atrás, quando foram criadas por artistas renomados, seus significados, naturalmente, eram distintos dos atuais.

A Vênus anatômica original, e a mais famosa de todas (vide imagem em destaque), foi criada em meados de 1780/1788, pelo escultor ceroplástico florentino, Clement Susini (1754–1814) e seu diretor, Felice Fontana (1730 – 1805). Ela encontra-se ainda em sua urna original, fazendo parte do acervo de história da medicina da MEDUNI, em Viena, Áustria; já os muitos outros modelos posteriores, produzidos pelo mesmo ateliê, ainda podem ser vistos em diversos museus da Europa, entre eles, o ‘La Specola’, um museu público de zoologia e história natural, fundado por Leopoldo II, em Florença, após este tornar-se o Grão-Duque da Toscana, em 1765. A intenção de Leopoldo com a criação do museu, era educar o povo florentino em relação à observação empírica das leis naturais, desafiando práticas lidas como irracionais, referentes à igreja católica romana.

Também com suas cópias posteriormente conhecidas como ‘Vênus Medici’, ‘Belezas Cortadas’, ou ‘Graças Dissecadas’, estas figuras/manequins, geralmente em tamanho real, eram confeccionadas em cera, com cabelos humanos, reluzentes olhos de vidro veneziano e muitas vezes carregavam colares de pérolas e outras joias. Conforme mencionado, em um período onde arte e ciência dialogavam lado a lado, elas eram muito mais que um mero modelo anatômico de estudo; eram obras de arte, que podiam ser dissecadas e apreciadas em sete camadas anatomicamente corretas.

Durante o século XVIII, o que compreendia-se como o estudo das ciências biológicas era algo amplo, incluindo desde estética até a metafísica. Por conseguinte, o estudo da Vênus Anatômica não apenas era uma personificação dos valores iluministas do período – no qual a anatomia era compreendida como uma reflexão do mundo e auge do conhecimento divino e intelectual – como também o modo de, através do corpo humano, vislumbrar conhecer a mente de seu criador, no caso, Deus.

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Josephinum, Collections and History of Medicine, MedUni Vienna/Foto de Joanna Ebenstein.

Neste período, o ensino de anatomia, dentro e fora das universidades, passou a ser amplamente valorizado. Multidões de curiosos visitavam museus e outros recintos, em busca de um vislumbre do corpo humano ou de sua própria mortalidade. Por este motivo, o intuito da criação da Vênus, foi o de ensinar anatomia de um modo diferente do convencional, utilizando cadáveres. Isso ocorria por inúmeras razões, primeiramente porque os mesmos estavam em processo de decomposição, sendo para muitos, considerados desagradáveis em aspecto de odor e aparência, e segundo porque, a dissecação constante, era vista como confusa, eticamente carregada e sujeita à escassez de disponibilidade ao grande público, seja por questões burocráticas, ou pelo fato de que os cadáveres para estudo, eram geralmente legados apenas à parcela de estudantes de anatomia ou medicina das universidades locais.

De acordo com Joanna Ebenstein, a estética foi um fator fundamental para o desenvolvimento destes manequins, uma vez que:

”Há uma citação no livro do ilustrador anatômico, Arnaud-Éloi Gautier D’Agoty, do século XVIII, na qual ele diz que ‘Para os homens serem instruídos, eles deve ser seduzidos pela estética, mas como alguém pode tornar a imagem da morte agradável?”.

Como o próprio diretor do ateliê, Felice Fontana, observou mais tarde:

“Se conseguíssemos reproduzir em cera todas as maravilhas de nossa máquina animal, não precisaríamos mais realizar dissecações, e estudantes, médicos, cirurgiões e artistas seriam capazes de encontrar seus modelos desejados em um estado permanente, livre de odor e incorruptível”.

Há de se notar que, a ligação entre anatomia e arte, não era algo relativamente novo no século XVIII. Séculos antes do surgimento da Vênus Anatômica, trabalhos médicos a respeito da anatomia, se tornaram conhecidos no ocidente, como por exemplo, o De Humani Corporis Fabrica Libri Septem, publicado em 1543, por Andreas Vesalius (1514 – 1564), médico belga, considerado por muitos, como sendo um dos pioneiros no estudo da anatomia na idade moderna. Em seu livro, composto por sete tomos, Vesalius disserta a respeito de diversas partes do corpo humano, desde os ossos e juntas, até o coração e cérebro. Tudo isso com gravuras bastante precisas do corpo humano. O trabalho de Vesalius tornou-se, não apenas um tratado médico de anatomia durante o renascimento, como também, uma grande representação da arte renascentista, através de suas ricas xilogravuras dos músculos e sistema nervoso.

Quando se trata de arte e anatomia, podemos ir ainda mais além, analisando os trabalhos de pintores, escultores e teóricos da arte renascentistas, como Leon Battista Alberti, ou Leonardo da Vinci. Enquanto Alberti, em seu próprio tratado intitulado ”Della Pintura”, de 1435, exortava pintores a criarem uma figura humana conforme existiam na natureza – composta de pele, musculatura e esqueleto – os trabalhos anatômicos de Da Vinci tornaram-se notórios durante e após o período em que este viveu. Segundo consta, o pintor, cientista, inventor e anatômico, havia dissecado mais de 100 corpos, e seu estudo da anatomia acabou por – em meados de 1490 – ser ampliado para uma área independente de sua pesquisa pessoal.

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Detalhe de uma gravura de Andreas Vesalius, em seu próprio livro, intitulado ‘De Humani Corporis Fabrica Libri Septem’ [1543], onde o mesmo segura um braço dissecado.

Com seus rostos e semblantes, muitas vezes portando uma expressão de profundo êxtase, cada um dos modelos anatômicos da Vênus, representa um minucioso e intrincado estudo de cadáveres, entregues a Susini, a partir do hospital de Santa Maria Nuova, nas proximidades de seu ateliê. A caracterização e disposição anatômica da Vênus, foi tão inovadora para a época que, durante sua criação, diversas estruturas corporais retratadas, ainda não possuíam nomenclatura científica.
As figuras de Susini, eram geralmente confeccionadas em uma mistura de terebintina de Veneza e cera, que é maleável e condizente com cores brilhantes, sendo frequentemente adornadas com jóias, fitas e maquiagem elaborada.

Estes modelos de cera, são o auge de uma tradição de ferramentas de ensino tridimensionais e anatômicas, que seria conhecida como “anatomias artificiais”, que remonta à virada do século XVIII. O gênero surgiu por volta de 1700, quando Gaetano Giulio Zummo (1656–1701), conhecido como Zumbo, aceitou a encomenda do cirurgião francês, Guillaume Desnoues (1650-1735), para criar um modelo semelhante à uma importante dissecção médica, que estava começando a se decompor. Zumbo era um abade siciliano que se deleitava com a criação de uma série de trabalhos de cera em miniatura, intitulados ”Teatros da Morte”, alguns que ostentavam nomes como “A Praga” e “A Vaidade da Grandeza Humana”, apresentando corpos com exatidão. O produto da colaboração de Desnoues e Zumbo, foi o primeiro modelo anatômico de ensino de cera, e estabeleceu a tradição de uma parceria artística/médica na criação de tais ferramentas. Embora tais figuras anatômicas em cera tenham sido desenvolvidas na França e Itália da virada do século XVIII, os modelos de jovens mulheres – e ocasionalmente homens – em posições quase etéreas e de caráter artístico simbólico realizados por Susini, definiriam o gênero deste novo tipo de obra artístico-científica.

A oficina de Fontana chegou a produzir mais de 2.500 modelos em cera, entre os anos de 1771 à 1893. Um número aproximado de 1.400 exemplares ainda pode ser encontrado no museu La Specola. Destes modelos, 18 são de corpo inteiro e apenas a mais famosa Vênus Anatômica, conhecida como ‘La Specula’, é totalmente desmontável.

A sua popularidade foi tão grande, que acabou por inspirar uma série de imitações – primeiro um conjunto de modelos semelhantes, feitos pela mesma oficina, para Napoleão e José II de Viena e, mais tarde, modelos, muitas vezes anunciados como “florentinos” ou “parisienses”. Exposições percorreriam a Europa, atraindo multidões de visitantes para vislumbrar modelos anatômicos em cera no continente, até o século XX.

Segundo ressalta Ebenstein, o fascínio – seja lá qual for sua original natureza – desenvolvido por estas esculturas, também possui um caráter similar ao do Memento Mori, interpretado pelo imaginário popular da época. Tratava-se da busca da compreensão a respeito de nossa condição humana e de nossa mortalidade. Segundo ela, tal imaginário pode ter sido passado fora do meio científico, para nós através do tempo.  Porém, aos olhares contemporâneos, para seus patronos, o valor das Vênus era igual, tanto na parte educativa, quanto na artística.

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Retrato feminino representando Memento Mori, datado do século XVIII.

Atualmente, a linha que divide o horror do fascínio dos visitantes das inúmeras Vênus Anatômicas, é tênue e instigante. Uma vez que, uma estátua ou monumento é resignificado de acordo com o passar do tempo e meio onde se encontra, o contexto cultural no qual a Vênus atualmente está inserida, fez dela mais que um manequim científico, ela tornou-se uma obra de arte, por muitos incompreendida, intrigando e cintilando significados, e vagando através do mito, fetiche e arte.

De acordo com Ebenstein:

”Inertes em seus caixões de vidro, elas acenam com um gentil sorriso ou um recuado aceno em êxtase […] um pacato brinquedo com tranças em dourados cabelos humanos reais; uma agarra-se à almofada de cetim comida por traças de seu caixão, enquanto seu torso entra em erupção em uma espontânea e sem sangue auto-dissecção; outra é coroada com uma tiara dourada, enquanto [a] outra usa uma fita de seda amarrada em um laço em um arco em torno de uma entranha dependurada…’’

Na época em que esses modelos foram concebidos e desenvolvidos, a anatomia da mulher era de grande interesse, tanto na área médica quanto na social; O resíduo dessas preocupações, conforme argumentado pela estudiosa Ludmilla Jordanova, em seu livro ‘Sexual Visions’ (Visões Sexuais, em tradução livre), pode ser encontrado na Vênus Anatômica e em outras estátuas anatômicas da época. A anatomia da mulher era compreendida naquela época, como a exceção ao corpo canônico masculino. A mulher era problemática, errática e perturbadora. Também partia do imaginário da época, que o temperamento feminino era considerado infantil, histérico, sensível e propenso a diversos tipos de distúrbios nervosos; em suma, a mulher não era um ser racional como o homem; ela era um ser ”criado par procriar”. Esse contraste pode ser notado nos modelos de Susini, onde cada uma de suas Vênus, apresenta um feto em seu ventre; segundo a crença difundida da época, a raison d’être da mulher como um todo.

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Do museu La Specola, Florença, Itália, século XVIII. Por Clemente Susini. Notem o pequeno feto.

No entanto, embora para muitos, seja irresistível uma análise social moldada aos nossos valores contemporâneos a respeito do modo como a Vênus Anatômica pode ser interpretada, há sempre de se lembrar que, o modo como ela era vista e compreendida por seus contemporâneos, e o modo como a vemos atualmente, são distintos. Em suma, a Vênus do século XVIII e XXI, são produtos diferentes, para públicos diferentes.

Com isso em vista, ainda que em uma análise mais aprofundada do estudo da Vênus, possa nos parecer um modo primitivo de objetificação da mulher diante de uma sociedade patriarcal, Joanna Ebenstein desmistifica tal concepção, alertando que a figura da Vênus não tinha como pressuposto a sexualização ou qualquer fetiche, uma vez que, de acordo com a pesquisadora, tais elementos não tinham o mesmo valor na época. Para ela, tais manequins seguem a tradição da escultura religiosa, uma vez que Susini, o escultor da mais famosa das Vênus, também realizava esculturas de caráter cristão. Ebenstein também salienta que, várias esculturas de caráter sacro, possuíam o mesmo semblante de êxtase profundo que as de Susini, como por exemplo, a obra-prima de mármore branco em tamanho real, de Gian Lorenzo Bernini, o Êxtase de Santa Teresa (1647-1652), que pode ser vista em Santa Maria della Vittoria, em Roma. Sendo assim, segundo assevera a autora, é possível separar o êxtase religioso, do êxtase de caráter erótico, construído séculos depois, por nossa sociedade ávida em interpretar ícones diversos, como sendo de caráter lascivo.

Talvez sem surpresa, finalizo o artigo salientando que, muitos anatomistas da época entenderam e praticaram seu ofício como uma expressão de devoção religiosa. Como Ebenstein escreve, a Vênus Anatômica foi criada em um momento em que “o ser humano… foi entendido como o pináculo da criação de Deus e um microcosmo do universo; conhecer o corpo humano era, em certo sentido, conhecer o mundo e a mente de Deus”. Muito além do belo, o feio, o sacro, o profano, independente dos significados que estas obras adquiriram/adquirem através do tempo, elas ainda permanecem instigando as pessoas ao seu redor, e mostrando a complexidade e fragilidade do ser humano.

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Vênus dissecada, criada por Rudolph Pohl, Dresden, Alemanha, cerca de 1930. Créditos da imagem: Münchner Stadtmuseum, Sammlumg Puppentheater/Schaustellerei.

Bibliografia e Referências: 

EBENSTEIN; Joanna. The Anatomical Venus: Wax, God, Death & the Ecstatic. D.A.P./Distributed Art Publishers, Inc. (24 de maio de 2016).

VESALIUS; Andres. De Humani Corporis Fabrica Libri Septem. 1543.

Cadavers in pearls: meet the Anatomical Venus. The Guardian. Disponível em: 
[https://www.theguardian.com/artanddesign/2016/may/17/anatomical-venus-anatomy-human-biology-joanna-ebenstein-books] – Acesso em Maio de 2018. 

Why these anatomical models are not disgusting. BBC. Disponível em:
[http://www.bbc.com/culture/story/20160526-why-these-anatomical-models-are-not-disgusting]. Acesso em Maio de 2018.

The Romantic, Macabre History of the Anatomical Venus. ARTSY. Disponível em:
[https://www.artsy.net/article/artsy-editorial-romantic-macabre-history-anatomical-venus]. Acesso em Maio de 2018.

An Ode to an Anatomical Venus: Waxing Poetic on the Uncanny Allure of 18th Century Dissectible Women. Atlas Obscura. Disponível em:
[https://www.atlasobscura.com/articles/an-ode-to-an-anatomical-venus-morbid-anatomy]. Acesso em Maio de 2018.

 

1 comentário Adicione o seu

  1. Ana Trindade disse:

    Gosto muito do modo como você pensa e analisa a história, dá para perceber que você não segue uma analogia linear, como é ensinado nas escolas. Mesmo em graduações, é comum vermos instituições que ainda pensam dessa forma dita positivista. Enfim, muito bom o artigo e admiro muito o seu site.

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